domingo, 26 de agosto de 2012

Jantar reúne centenas de vegetarianos e veganos e mostra variedades da culinária


Sábado à noite. Mais de 100 pessoas seguiram para o restaurante Papaya Verde, no Espinheiro, para, às 19 horas em ponto, dar início a uma dessas confraternizações em torno de um bufê. Nada de novo no front de um Recife que cada vez mais “sai para comer fora”, não fosse uma coisa: nenhuma das receitas selecionadas utilizava carne ou qualquer outro produto derivado da “exploração animal”.
Lá estavam praticantes do lactovegetarianismo, que inclui lácteos na dieta; os ovo-lactovegetarianos, que acrescentam mais um item a esta soma; os vegetarianos estritos, que se alimentam apenas de produtos de origem vegetal e os veganos que, além de não ingerirem nada de origem animal, não usam artigos de couro, peles, lã, penas, escamas e ossos e não frequentam atividades ou lugares que utilizem animais para fins de entretenimento, a exemplo de zoológicos, rodeios ou vaquejadas, para citar apenas três.
O evento foi montado em conjunto pelo Grupo Mandacaru, que representa a Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB) no Recife, e o Grupo Ganapati, blog que discute assuntos ligados à ecologia, ética, espiritualidade e ao vegetarianismo. O cardápio de 29 pratos, formatado por João Asfora Neto, um dos sócios no Papaya Verde, pretendia, além de difundir a cultura vegana e lactovegetariana, divulgar a riqueza e variedade dessas culinárias e, ao mesmo tempo, arrecadar recursos para as ações de ativismo em defesa dos animais no Recife. A farra custou R$ 35 por pessoa, sem incluir bebidas.
Foto: Igo Bione/JC Imagem
Num mundo vermelho-sangue, expurgar a carne da mesa é assinar um atestado de diferença extrema. O vegetariano é aquele que sempre gera uma sensação de inadequação na dona da casa, que se vê numa sinuca ao tentar formular alguma receita, a seu ver, saborosa, sem utilizar qualquer proteína animal: “Mas nem um caldinho de carne? ”, rebate ela, externando sua frustração de cozinheira de mãos atadas. O vegano é aquele cara que passeia os olhos pelos cardápios dos restaurantes, tentando encontrar algo que lhe sirva, em meio a uma profusão de capítulos divididos em “aves”, “carnes”, “peixes”, “frutos do mar” e “massas”, invariavelmente recheadas pelos ingredientes anteriormente recusados ou queijos, muitos queijos.
No fim do processo, essa história termina com uma longa negociação com o garçom, cujo resultado vai parar na mão do chef de cozinha que, lá de dentro, faz o que pode com o que tem na geladeira. “No geral, como aquilo que as pessoas chamam de acompanhamentos”, resume a jornalista Ana Quitéria, 35 anos, vegetariana desde 2005.
Não é raro que histórias de “conversão” ao vegetarianismo tenham se dado bem mais tarde na vida. Aliás, esta é a regra, e não a exceção.
A professora da UFPE e coordenadora da SVB no Recife, Bárbara Bastos, por exemplo, conta que virou vegetariana há apenas quatro anos, depois de assistir ao documentário A carne é fraca (produzido pelo Instituto Nina Rosa sobre os impactos que o ato de comer carne representa para a saúde humana, para os animais e para o meio-ambiente).
“Cresci achando que comer carne era normal, e que os animais não sofriam pra virar comida. No filme vi não só que isso não é verdade, como a produção de alimentos de origem animal está diretamente ligada a vários problemas ambientais graves (desmatamento, poluição, desperdício de água doce) como a problemas sociais (condições precárias dos trabalhadores, trabalho escravo, impacto no preço dos alimentos). Decidi parar de contribuir com esses problemas e tentar algo antes impensável pra mim, que gostava muito de carne”, relata.
Depois da mudança, de dentro pra fora, a jornada está apenas no começo. Há que se iniciar o processo de transição e adaptação, que vai alterar não apenas a dieta, mas a forma como o iniciado se relaciona com o mundo, as pessoas e seus hábitos alimentares. “No começo parece algo muito difícil, mas não é, basta se libertar de viver no ‘automático’ e se abrir para um novo mundo de possibilidades”, atesta Bárbara Bastos.
Satisfazer o paladar e os critérios nutricionais aparece como primeiro desafio, conta Bárbara: “Minha maior dificuldade é que fora de casa não encontro boas opções de comida em qualquer lugar. O principal substituto da carne, do ponto de vista nutricional, são os feijões e as leguminosas e, geralmente, as pessoas os temperam com charque ou linguiça. Nos self-services é comum colocarem ovos e laticínios em grande parte dos acompanhamentos, de maneira que o almoço acaba sendo feijão macassar na água e sal com arroz escorrido e salada. Em lugares que preparam a comida na hora é mais fácil, porque dá pra conversar e pedir para trocar ingredientes. Sempre encontro o que comer, mas nem sempre algo que agrada ao paladar”, diz, resumindo o que, numa sociedade que cultua o prazer, é, para muitos, o fim da linha.
E nessa questão, João Asfora Neto não doura a pílula da abdicação às tentações da carne: “Quase ninguém deixa de comer carne porque é ruim ou não gosta, a maioria deixa por princípio, por ética, por preocupações ecológicas e humanitárias”. E nos desafia a encarar nossa própria opção como desejo, e não necessidade: “Desde que o homem foi capaz de fabricar a vitamina B12, a única que existe apenas em produtos de origem animal, não há mais desculpas para dizer que é necessário comer carne, o único argumento é a gula”.
A opinião dos outros e a convivência em sociedade também se apresentam como obstáculos a serem superados. Segundo João Asfora Neto, vegetariano desde a adolescência (1985) e vegano há três anos, no princípio, todas as vezes que voltava a consumir carne o fazia por pressão familiar. “Ainda assim, me incomodava o precisar matar para me alimentar, sabendo da dor que envolvia tudo isso. Na época, um livro da vida de Gandhi me influenciou a tomar a essa decisão, que entre outras coisas dizia “Para mim, a vida de um cordeiro não é menos preciosa que a de um homem. Não estaria disposto a sacrificar a vida de um deles em nome do corpo humano. Acho que quanto mais indefesa a criatura mais direito ela tem à proteção dos homens contra a crueldade humana”, rememora.
Na passagem de vegetariano para vegano foi uma obra fílmica que fez sua cabeça: Terráqueos (Earthlings), documentário norte-americano que, entre outros aspectos, usa câmeras escondidas para detalhar as práticas diárias de algumas das maiores indústrias do mundo, todas visando o lucro com os animais.
A necessidade de estar sempre explicando sua opção também é uma das queixas de Ana Quitéria: “De vez em quando aparece alguém querendo me ‘desconverter’ e me pergunta sobre caninos e proteínas. Também me perguntam se, estando em uma ilha deserta, morreria de fome para não matar um animal. Com estes eu deixei de discutir, pois eles não estão curiosos sobre o vegetarianismo, só querem encher o saco”, declara.
O tópico da dentição, aliás, é um argumento sempre sacado da manga pelos onívoros, como um atestado da nossa programação genética carnívora e ela vem sempre seguida pelo argumento da debilidade física que sua ausência provoca. “Por isso que é amarelo” é uma frase recorrente quando um grupo antagoniza o outro. “O comer carne pode e deve ter sido natural em outras fases do processo da evolução humana. Se fosse tão natural isso hoje você mataria o seu próprio jantar em vez de pagar alguém para fazer o serviço sujo por você, escondido em um matadouro. Esse processo do abate tão ‘lindo e natural’ passaria na TV no lugar dos franguinhos risonhos e ridículos de capacete. Se fosse tão natural assim, as crianças iriam em excursões educativas escolares ver a morte ‘natural’ dos bezerros anêmicos (vitelas) e a criação industrial de porcos, vacas, e galinhas poedeiras”, indigna-se.
Nessa guinada alimentar que alguns consideram drástica, há também aqueles que estão no meio do caminho, ou seja, ainda não conseguiram abolir a carne do cardápio, mas se sentem motivados, como a jornalista Érika Valença: “Quando era criança, não gostava de comer carne. Um dia o pediatra disse à minha mãe que não me forçasse, que estava tudo bem e que, se eu pedisse, desse. Assim ela fez, nunca me forçou. Comi porque gostava de macarrão com carne moída, sopa e assim acostumei o paladar. Hoje em dia, se eu conseguisse, primeiro, aderir a esse hábito, com certeza educaria meus filhos assim”, afirma.
Fonte: Jornal do Commercio

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