ANDA – Você é um dos maiores pesquisadores e críticos da
pecuarização da Amazônia. Em seu Livro de Ouro da Amazônia o assunto é
tratado como urgente, gravíssimo, sem controle e com um desequilíbrio
social e ambiental instalado. Poderia nos dar informações atualizadas
sobre a situação?
João Meirelles – É um processo muito rápido. Tudo se iniciou há muito pouco tempo, há três décadas. E é um processo que tende a crescer em progressão geométrica. A gente tinha na Amazônia um rebanho de 2 milhões de cabeças de gado, que é uma coisa mais histórica, com pastagens naturais. Hoje a Amazônia tem um terço do rebanho nacional, cerca de 75 milhões de cabeças. A tendência é que a região receba a maior parte do rebanho brasileiro e tenha, em 20 anos, 200 milhões de cabeças, e com certeza usando o total da floresta.
ANDA – Que ações estão sendo feitas ou que deveriam estar sendo adotadas pelas instâncias públicas e privadas para evitar o desastre socioambiental?
João Meirelles – O governo não tem uma política clara. De um lado ele coíbe o desmatamento, mas ao mesmo tempo apóia financiando a pecuária e facilitando os empreendimentos. Então não existe apoio governamental. O que a gente tem que trabalhar é com a informação das pessoas para que elas compreendam o impacto dessa produção. O governo só vai tomar alguma decisão quando as pessoas acreditarem que a pecuária é um mal totalmente desnecessário.
ANDA – Suas pesquisas recentes tomam um perfil teórico voltado à biossociodiversidade. Que resultados em termos de projetos e ações essa postura sustentável tem obtido ante as contradições da questão ambiental amazônica?
João Meirelles – Só vamos conseguir vencer esta batalha contra a pecuária se tivermos outras atividades econômicas mais interessantes e sustentáveis. E nós não temos uma resposta única. Não há como dizer: “Olha, substitui o boi por alguma outra coisa.” Há que se substituir por uma cesta de produtos vegetais que possam dar respostas às necessidades locais de alimentação, emprego e que também gerem renda e emprego para que a pecuária não seja mais necessária. Isto porque, de todas as atividades econômicas, a pecuária é o pior negócio. Se o fazendeiro deixasse o dinheiro na poupança, ele ganharia mais dinheiro do que com a pecuária. E isto são dados de pesquisa. A pecuária não se justifica nem como atividade econômica. Poderiam dizer que gera empregos, que é uma atividade econômica importante. Mas é mentira. A pecuária na Amazônia representa 0,5% do PIB do Brasil, uma cifra insignificante. Estamos entregando a maior floresta tropical do planeta e todo o nosso futuro por causa de 0,5% do PIB. Se dissessem que isso gera 1 milhão de empregos, ou que representa a renda de 10% do país, até poderiam ter um argumento. Mas do ponto de vista econômico a pecuária não se sustenta, é totalmente descabida, não tem nada que a justifique, a não ser uma maneira de ocupar a terra de forma ilegal.
ANDA – O que você acha da anistia proposta pelo governo para os responsáveis pelos desmatamentos ilegais da Amazônia?
João Meirelles – Esta é uma questão que retorna o tempo inteiro, na medida em que não se reconhece um problema até mais profundo, mais estrutural do que conjuntural. Quando não se assume que o desmatamento seja um mal, as pessoas começam a achar maneiras de valorizá-lo, de justificá-lo. Temos é que fazer uma reflexão mais profunda. Se a gente olhar em termos planetários, não cabem no mesmo planeta Terra o boi, a galinha, o porco e o homem. Não tem espaço para alimentar esses animais, que por sua vez vão ser alimentos do homem. Então nós temos que buscar outras alternativas, a Amazônia é só a bola da vez. É só o lugar onde no momento as coisas estão ocorrendo. Esta questão é mundial, e não é diferente nos outros lugares.
ANDA – Perante o avançado estado de destruição da Floresta, ainda há lugar para o discurso do desenvolvimento sustentável? Que medidas esse conceito demanda de investidores, população e instâncias governamentais?
João Meirelles – Não existe tirar da cartola alguma solução mágica. É um conjunto de pequenas ações que podem ser tomadas, e isto tem que estar ligado diretamente ao consumidor. Quando ele está com seu carrinho no supermercado, ele é quem toma a sua decisão sobre o futuro do planeta, não é o governo quando emite um decreto. Quando o consumidor enxerga que um produto como a castanha-do-pará ajuda a manter a floresta em pé, aí sim estamos fazendo a sustentabilidade. A gente não pode perder a noção de como as coisas acontecem. O consumidor tem que valorizar o que ele acha que justifica manter a floresta em pé e aí sim vai ser possível algo mais útil do que boi. Boi tem que ir de volta para o presépio e ficar lá.
ANDA – “A humanidade não precisa pagar este preço para saciar a ambição de um punhado de madeireiros e pecuaristas, e quem os acoberta, incompetentes para trabalhar na legalidade e nos padrões mínimos da ética e solidariedade. Essa gente se esconde atrás da cortina de fumaça da corrupção e do medo, sua lei é a bala de revólver e o dinheiro ilegal”. Ao ler este trecho do seu livro, percebemos que somos praticamente impotentes perante os mercenários da Amazônia. Parece que estamos sempre vendo o mesmo filme enquanto a situação se agrava. Por que a cota de responsabilidades pró-ativa que compete ao governo parece que nunca é cumprida e o que podem os cidadãos fazer contra isto?
João Meirelles – O governo é reflexo do que o cidadão pensa. Se continuamos escolhendo governos, nas suas várias instâncias, que não se sentem responsáveis e não adotam medidas enérgicas, é porque a gente não acha isto importante. Primeiro precisamos de um despertar rápido – porque também a floresta não vai agüentar tanto desaforo. Nem a floresta, nem seus habitantes, pois a gente sempre deve pensar nessa relação conjunta. Não acho que a questão é tratar do governo nem tratar do desmatamento. Isto seria como medir a febre do doente. O desmatamento é só uma medida: está aumentando ou está diminuindo. O que importa é que o consumo de carne é que gera a carne bovina, de frango, suínos e que por sua vez gera a necessidade de soja. O consumo de carne é que gera o desmatamento da Amazônia. Ainda estamos discutindo na esfera pública os sintomas, e não as causas.
ANDA – Nos seus artigos você cita que o sonho do pequeno produtor da região é tornar-se pecuarista. Você já apresentou dados sobre as muitas vantagens de produção, por exemplo, em cooperativas de permacultura em comparação com a criação de gado em área idêntica. Que outras soluções produtivas deveriam ser incentivadas para o pequeno produtor, de forma a obter resultados sustentáveis e a conservação da floresta? E como medidas neste sentido poderiam ser incentivadas?
João Meirelles – Eu acho que não vamos ter tempo, além de que ninguém conscientiza ninguém. Se o produtor perceber que é mais negócio produzir a castanha, açaí, frutas ou diversos vegetais, ele vai entender que é uma péssima idéia a pecuária. Eu acho que o consumidor tem que atuar pesadamente decidindo o que ele vai consumir. Se você for a um supermercado em Curitiba ou São Paulo, poderá olhar na prateleira quanto por cento tem de Amazônia. Deve ter 0,5% ou 1%. O país é 60% Amazônia. Se a gente quer salvá-la, tem que se preocupar com este negócio. Abra a sua geladeira e veja quanto por cento tem de Amazônia. A gente tem que começar dentro de casa. Não adianta falar dos outros, de coisas etéreas. Precisamos iniciar no cotidiano das pessoas. O seu almoço hoje foi quanto por cento de Amazônia?
ANDA – Isto remete a um estudo seu muito divulgado intitulado “Você já comeu a Amazônia hoje?”. Nele há uma indicação de que altíssima percentagem da carne consumida hoje no país vem dessa região. Isto tende a continuar?
João Meirelles – É. Mas as pessoas têm que comer a Amazônia certa. E elas estão comendo a Amazônia errada. Da carne bovina do Brasil, um terço vem da Amazônia. Isto quer dizer que, de cada três bifinhos que a pessoa come, um é da Amazônia.
ANDA – Eu li num dos seus textos que a qualidade dessa carne produzida na Amazônia é ruim. E por que continuam insistindo nessa produção?
João Meirelles – Como consumidor também não saberia dizer, porque não consumo carne há muitos anos. Mas é uma carne que não tem vigilância sanitária suficiente. A Amazônia é um ponto de doenças. E elas são muito mais crônicas aqui na região. Se você vai somando as condições, os animais sofrem muito mais para ir para o abatedouro. O conjunto de fatores locais resulta num produto de pior qualidade. E poderíamos ter produtos muito melhores, indo atrás de soluções vegetais que já estão disponíveis.
ANDA – “Da minha casa, a mil metros do Porto de Belém, vejo os quinze mil caminhões boiadeiros do sul do Pará. Sinto cheiro do medo e desespero dos animais a caminho do sacrifício e da guerra”. Você escreveu este texto num artigo chamado Carta de Belém aos Libaneses, em especial aos tiroleses, sidônios e beirutenses. Poderia comentar a exportação de bois vivos? O fato de o Brasil possuir um único porto que faz esse tipo de negócio, justamente no Pará, tem relação com os “poderes” paralelos mandantes na região amazônica? Isto não pode ser legalmente impedido?
João Meirelles – A questão do boi vivo tem várias leituras. A primeira seria econômica. Existe uma oportunidade econômica de vários países que estão desabastecidos e são todos ditaduras. É o Egito que compra carne, o Líbano que está em guerra, a Venezuela que é uma ditadura. O Brasil exporta o que ele tem de melhor, que é a Amazônia, só que de uma maneira destruída, para a ditadura. O segundo olhar é que, ao exportar o boi vivo, existem brechas na legislação e paga-se muito pouco imposto. Além de vender algo que é muito precioso, fica muito pouco no país. A própria região nem sente economicamente o retorno. Um outro lado é que se valida um sistema perverso, ainda do ponto de vista econômico, que permite e apóia mais destruição. Pois já que vale a pena exportar o boi em pé, então vamos aumentar a pecuária da Amazônia. Como isto é aprovado pelo poder público, só tende a aumentar a crise ambiental e social como resultado dessa equação toda. E isso já representa cerca de 10% da produção de bois da Amazônia. E está se falando em um aumento de 20% só do ano passado para cá. O que a gente prevê é que este mercado deve aumentar e se tornar ainda mais complicado para a Amazônia, porque essas coisas não são sustentáveis.
ANDA – O Brasil orgulha-se dos números do agronegócio nacional. Incluindo-se a pecuária, o volume desse setor gira em torno de um terço do PIB. Disto, aproximadamente 75% da movimentação econômica se dá fora da porteira, movimentada pelo processamento de animais terminados, das indústrias de alimentos até a gôndola do supermercado e o consumidor final. Como mobilizar empresas, a mídia e os cidadãos para uma mudança necessária nesse paradigma da economia tradicional em tempo de salvar a Amazônia?
João Meirelles – Há duas coisas simples para fazer. A primeira é que, sobre este boi que vai embora e vai virar strogonoff lá para o paulistano e churrasquinho de final de semana para o presidente da República, sejam pagos os custos ambientais e sociais. Este boi é barato por causa disso: porque não vale a lei social. Não tem uma única fazenda na Amazônia que respeite o meio ambiente. Eu estou até hoje procurando. Não há uma única fazenda pecuária em condições de receber uma certificação, nem uma única dentro da lei na região. Agora existe um outro lado, o lado da responsabilidade, da ética. Se uma rede de supermercados ou restaurantes tivesse a coragem de dizer: “Eu não vou mais comprar carne daquela região porque eu acho que a Amazônia vale muito mais do que este bifinho que eu vendo baratinho para vocês”, ganharia tanto em termos de imagem e respeito do consumidor, que qualquer prejuízo que isso viesse a significar seria menor. Eu acho que agora temos que ir para uma discussão de valores e não uma discussão puramente econômica. Eu acho que temos estes dois campos para trabalhar de imediato.
ANDA – Como é isso? Não existe nenhuma fazenda pecuária dentro da lei na Amazônia?
João Meirelles – São pequenos gestos. O fato de o boi beber água dentro do rio é uma contravenção. Está no código florestal desde 1965. Mas ninguém vai atrás disso. Na verdade, eu fecharia todos os currais do Brasil. Para isto existe a lei, e ela existe há uns 40 anos. Então a lei não serve para nada.
ANDA – Estamos vendo uma situação irreversível se desenhar. Há motivos para acreditar na reversibilidade disto?
João Meirelles – Eu acho que sim porque não existia a pecuária na Amazônia, há 30, 40 anos. E por que a gente quer que ela sobreviva? Eu acho que há muito mais valores sociais, ambientais e econômicos que a gente pode tirar como vantagem da região, porque a pecuária foi a pior escolha. Quando o homem escolheu a pecuária, fez a pior escolha da história da humanidade. Mas ele não é obrigado a fazer isto porque seus avós faziam isto. A gente precisa deixar esse determinismo da submissão e pensar de uma maneira nova. Eu acredito e tenho esperança de que é possível mudar rapidamente.
ANDA – Você é vegetariano? Você vê o vegetarianismo como uma saída para a crise ambiental da Amazônia?
João Meirelles – Eu não sou vegetariano, mas eu reconheço que o mundo terá de se tornar vegetariano. Não como carne bovina, nem de nenhum bicho que anda. Mas de vez em quando eu como peixe.
ANDA – Qual a sua mensagem para quem pretende colaborar com a conservação da Amazônia?
João Meirelles – Comam a Amazônia certa. Abram a geladeira, procurem a Amazônia lá dentro, não ponham lá a Amazônia errada. Só pequenas ações do dia-a-dia como a valorização do açaí, das frutas, da castanha e do artesanato é que vão salvar a região.
fonte: anda
João Meirelles – É um processo muito rápido. Tudo se iniciou há muito pouco tempo, há três décadas. E é um processo que tende a crescer em progressão geométrica. A gente tinha na Amazônia um rebanho de 2 milhões de cabeças de gado, que é uma coisa mais histórica, com pastagens naturais. Hoje a Amazônia tem um terço do rebanho nacional, cerca de 75 milhões de cabeças. A tendência é que a região receba a maior parte do rebanho brasileiro e tenha, em 20 anos, 200 milhões de cabeças, e com certeza usando o total da floresta.
ANDA – Que ações estão sendo feitas ou que deveriam estar sendo adotadas pelas instâncias públicas e privadas para evitar o desastre socioambiental?
João Meirelles – O governo não tem uma política clara. De um lado ele coíbe o desmatamento, mas ao mesmo tempo apóia financiando a pecuária e facilitando os empreendimentos. Então não existe apoio governamental. O que a gente tem que trabalhar é com a informação das pessoas para que elas compreendam o impacto dessa produção. O governo só vai tomar alguma decisão quando as pessoas acreditarem que a pecuária é um mal totalmente desnecessário.
ANDA – Suas pesquisas recentes tomam um perfil teórico voltado à biossociodiversidade. Que resultados em termos de projetos e ações essa postura sustentável tem obtido ante as contradições da questão ambiental amazônica?
João Meirelles – Só vamos conseguir vencer esta batalha contra a pecuária se tivermos outras atividades econômicas mais interessantes e sustentáveis. E nós não temos uma resposta única. Não há como dizer: “Olha, substitui o boi por alguma outra coisa.” Há que se substituir por uma cesta de produtos vegetais que possam dar respostas às necessidades locais de alimentação, emprego e que também gerem renda e emprego para que a pecuária não seja mais necessária. Isto porque, de todas as atividades econômicas, a pecuária é o pior negócio. Se o fazendeiro deixasse o dinheiro na poupança, ele ganharia mais dinheiro do que com a pecuária. E isto são dados de pesquisa. A pecuária não se justifica nem como atividade econômica. Poderiam dizer que gera empregos, que é uma atividade econômica importante. Mas é mentira. A pecuária na Amazônia representa 0,5% do PIB do Brasil, uma cifra insignificante. Estamos entregando a maior floresta tropical do planeta e todo o nosso futuro por causa de 0,5% do PIB. Se dissessem que isso gera 1 milhão de empregos, ou que representa a renda de 10% do país, até poderiam ter um argumento. Mas do ponto de vista econômico a pecuária não se sustenta, é totalmente descabida, não tem nada que a justifique, a não ser uma maneira de ocupar a terra de forma ilegal.
ANDA – O que você acha da anistia proposta pelo governo para os responsáveis pelos desmatamentos ilegais da Amazônia?
João Meirelles – Esta é uma questão que retorna o tempo inteiro, na medida em que não se reconhece um problema até mais profundo, mais estrutural do que conjuntural. Quando não se assume que o desmatamento seja um mal, as pessoas começam a achar maneiras de valorizá-lo, de justificá-lo. Temos é que fazer uma reflexão mais profunda. Se a gente olhar em termos planetários, não cabem no mesmo planeta Terra o boi, a galinha, o porco e o homem. Não tem espaço para alimentar esses animais, que por sua vez vão ser alimentos do homem. Então nós temos que buscar outras alternativas, a Amazônia é só a bola da vez. É só o lugar onde no momento as coisas estão ocorrendo. Esta questão é mundial, e não é diferente nos outros lugares.
ANDA – Perante o avançado estado de destruição da Floresta, ainda há lugar para o discurso do desenvolvimento sustentável? Que medidas esse conceito demanda de investidores, população e instâncias governamentais?
João Meirelles – Não existe tirar da cartola alguma solução mágica. É um conjunto de pequenas ações que podem ser tomadas, e isto tem que estar ligado diretamente ao consumidor. Quando ele está com seu carrinho no supermercado, ele é quem toma a sua decisão sobre o futuro do planeta, não é o governo quando emite um decreto. Quando o consumidor enxerga que um produto como a castanha-do-pará ajuda a manter a floresta em pé, aí sim estamos fazendo a sustentabilidade. A gente não pode perder a noção de como as coisas acontecem. O consumidor tem que valorizar o que ele acha que justifica manter a floresta em pé e aí sim vai ser possível algo mais útil do que boi. Boi tem que ir de volta para o presépio e ficar lá.
ANDA – “A humanidade não precisa pagar este preço para saciar a ambição de um punhado de madeireiros e pecuaristas, e quem os acoberta, incompetentes para trabalhar na legalidade e nos padrões mínimos da ética e solidariedade. Essa gente se esconde atrás da cortina de fumaça da corrupção e do medo, sua lei é a bala de revólver e o dinheiro ilegal”. Ao ler este trecho do seu livro, percebemos que somos praticamente impotentes perante os mercenários da Amazônia. Parece que estamos sempre vendo o mesmo filme enquanto a situação se agrava. Por que a cota de responsabilidades pró-ativa que compete ao governo parece que nunca é cumprida e o que podem os cidadãos fazer contra isto?
João Meirelles – O governo é reflexo do que o cidadão pensa. Se continuamos escolhendo governos, nas suas várias instâncias, que não se sentem responsáveis e não adotam medidas enérgicas, é porque a gente não acha isto importante. Primeiro precisamos de um despertar rápido – porque também a floresta não vai agüentar tanto desaforo. Nem a floresta, nem seus habitantes, pois a gente sempre deve pensar nessa relação conjunta. Não acho que a questão é tratar do governo nem tratar do desmatamento. Isto seria como medir a febre do doente. O desmatamento é só uma medida: está aumentando ou está diminuindo. O que importa é que o consumo de carne é que gera a carne bovina, de frango, suínos e que por sua vez gera a necessidade de soja. O consumo de carne é que gera o desmatamento da Amazônia. Ainda estamos discutindo na esfera pública os sintomas, e não as causas.
ANDA – Nos seus artigos você cita que o sonho do pequeno produtor da região é tornar-se pecuarista. Você já apresentou dados sobre as muitas vantagens de produção, por exemplo, em cooperativas de permacultura em comparação com a criação de gado em área idêntica. Que outras soluções produtivas deveriam ser incentivadas para o pequeno produtor, de forma a obter resultados sustentáveis e a conservação da floresta? E como medidas neste sentido poderiam ser incentivadas?
João Meirelles – Eu acho que não vamos ter tempo, além de que ninguém conscientiza ninguém. Se o produtor perceber que é mais negócio produzir a castanha, açaí, frutas ou diversos vegetais, ele vai entender que é uma péssima idéia a pecuária. Eu acho que o consumidor tem que atuar pesadamente decidindo o que ele vai consumir. Se você for a um supermercado em Curitiba ou São Paulo, poderá olhar na prateleira quanto por cento tem de Amazônia. Deve ter 0,5% ou 1%. O país é 60% Amazônia. Se a gente quer salvá-la, tem que se preocupar com este negócio. Abra a sua geladeira e veja quanto por cento tem de Amazônia. A gente tem que começar dentro de casa. Não adianta falar dos outros, de coisas etéreas. Precisamos iniciar no cotidiano das pessoas. O seu almoço hoje foi quanto por cento de Amazônia?
ANDA – Isto remete a um estudo seu muito divulgado intitulado “Você já comeu a Amazônia hoje?”. Nele há uma indicação de que altíssima percentagem da carne consumida hoje no país vem dessa região. Isto tende a continuar?
João Meirelles – É. Mas as pessoas têm que comer a Amazônia certa. E elas estão comendo a Amazônia errada. Da carne bovina do Brasil, um terço vem da Amazônia. Isto quer dizer que, de cada três bifinhos que a pessoa come, um é da Amazônia.
ANDA – Eu li num dos seus textos que a qualidade dessa carne produzida na Amazônia é ruim. E por que continuam insistindo nessa produção?
João Meirelles – Como consumidor também não saberia dizer, porque não consumo carne há muitos anos. Mas é uma carne que não tem vigilância sanitária suficiente. A Amazônia é um ponto de doenças. E elas são muito mais crônicas aqui na região. Se você vai somando as condições, os animais sofrem muito mais para ir para o abatedouro. O conjunto de fatores locais resulta num produto de pior qualidade. E poderíamos ter produtos muito melhores, indo atrás de soluções vegetais que já estão disponíveis.
ANDA – “Da minha casa, a mil metros do Porto de Belém, vejo os quinze mil caminhões boiadeiros do sul do Pará. Sinto cheiro do medo e desespero dos animais a caminho do sacrifício e da guerra”. Você escreveu este texto num artigo chamado Carta de Belém aos Libaneses, em especial aos tiroleses, sidônios e beirutenses. Poderia comentar a exportação de bois vivos? O fato de o Brasil possuir um único porto que faz esse tipo de negócio, justamente no Pará, tem relação com os “poderes” paralelos mandantes na região amazônica? Isto não pode ser legalmente impedido?
João Meirelles – A questão do boi vivo tem várias leituras. A primeira seria econômica. Existe uma oportunidade econômica de vários países que estão desabastecidos e são todos ditaduras. É o Egito que compra carne, o Líbano que está em guerra, a Venezuela que é uma ditadura. O Brasil exporta o que ele tem de melhor, que é a Amazônia, só que de uma maneira destruída, para a ditadura. O segundo olhar é que, ao exportar o boi vivo, existem brechas na legislação e paga-se muito pouco imposto. Além de vender algo que é muito precioso, fica muito pouco no país. A própria região nem sente economicamente o retorno. Um outro lado é que se valida um sistema perverso, ainda do ponto de vista econômico, que permite e apóia mais destruição. Pois já que vale a pena exportar o boi em pé, então vamos aumentar a pecuária da Amazônia. Como isto é aprovado pelo poder público, só tende a aumentar a crise ambiental e social como resultado dessa equação toda. E isso já representa cerca de 10% da produção de bois da Amazônia. E está se falando em um aumento de 20% só do ano passado para cá. O que a gente prevê é que este mercado deve aumentar e se tornar ainda mais complicado para a Amazônia, porque essas coisas não são sustentáveis.
ANDA – O Brasil orgulha-se dos números do agronegócio nacional. Incluindo-se a pecuária, o volume desse setor gira em torno de um terço do PIB. Disto, aproximadamente 75% da movimentação econômica se dá fora da porteira, movimentada pelo processamento de animais terminados, das indústrias de alimentos até a gôndola do supermercado e o consumidor final. Como mobilizar empresas, a mídia e os cidadãos para uma mudança necessária nesse paradigma da economia tradicional em tempo de salvar a Amazônia?
João Meirelles – Há duas coisas simples para fazer. A primeira é que, sobre este boi que vai embora e vai virar strogonoff lá para o paulistano e churrasquinho de final de semana para o presidente da República, sejam pagos os custos ambientais e sociais. Este boi é barato por causa disso: porque não vale a lei social. Não tem uma única fazenda na Amazônia que respeite o meio ambiente. Eu estou até hoje procurando. Não há uma única fazenda pecuária em condições de receber uma certificação, nem uma única dentro da lei na região. Agora existe um outro lado, o lado da responsabilidade, da ética. Se uma rede de supermercados ou restaurantes tivesse a coragem de dizer: “Eu não vou mais comprar carne daquela região porque eu acho que a Amazônia vale muito mais do que este bifinho que eu vendo baratinho para vocês”, ganharia tanto em termos de imagem e respeito do consumidor, que qualquer prejuízo que isso viesse a significar seria menor. Eu acho que agora temos que ir para uma discussão de valores e não uma discussão puramente econômica. Eu acho que temos estes dois campos para trabalhar de imediato.
ANDA – Como é isso? Não existe nenhuma fazenda pecuária dentro da lei na Amazônia?
João Meirelles – São pequenos gestos. O fato de o boi beber água dentro do rio é uma contravenção. Está no código florestal desde 1965. Mas ninguém vai atrás disso. Na verdade, eu fecharia todos os currais do Brasil. Para isto existe a lei, e ela existe há uns 40 anos. Então a lei não serve para nada.
ANDA – Estamos vendo uma situação irreversível se desenhar. Há motivos para acreditar na reversibilidade disto?
João Meirelles – Eu acho que sim porque não existia a pecuária na Amazônia, há 30, 40 anos. E por que a gente quer que ela sobreviva? Eu acho que há muito mais valores sociais, ambientais e econômicos que a gente pode tirar como vantagem da região, porque a pecuária foi a pior escolha. Quando o homem escolheu a pecuária, fez a pior escolha da história da humanidade. Mas ele não é obrigado a fazer isto porque seus avós faziam isto. A gente precisa deixar esse determinismo da submissão e pensar de uma maneira nova. Eu acredito e tenho esperança de que é possível mudar rapidamente.
ANDA – Você é vegetariano? Você vê o vegetarianismo como uma saída para a crise ambiental da Amazônia?
João Meirelles – Eu não sou vegetariano, mas eu reconheço que o mundo terá de se tornar vegetariano. Não como carne bovina, nem de nenhum bicho que anda. Mas de vez em quando eu como peixe.
ANDA – Qual a sua mensagem para quem pretende colaborar com a conservação da Amazônia?
João Meirelles – Comam a Amazônia certa. Abram a geladeira, procurem a Amazônia lá dentro, não ponham lá a Amazônia errada. Só pequenas ações do dia-a-dia como a valorização do açaí, das frutas, da castanha e do artesanato é que vão salvar a região.
fonte: anda
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