domingo, 28 de outubro de 2012

Direitos animais, ciência, religião e o progresso moral da humanidade

“A recusa em acreditar naquilo que não se pode ver por si mesmo é absurda. Pense bem: eu nunca vi Napoleão com meus próprios olhos, mas isso não significa que Napoleão não existia. [...] Darwin não acreditava em seus próprios olhos. Ele verificava sua teoria contra as evidências colhidas de extensas correspondências com naturistas por todo o mundo. Mackay [professor criacionista], me parece, não compreende a ciência num nível profundo. Todo o grande desafio da ciência está em investigar fenômenos além da experiência humana, das galáxias distantes a bactérias microscópicas”. (Richard Dawkins, God strikes back, vídeo, 7:16-8:12)
A ciência não é sobre certezas, é sobre identificar problemas e testar hipóteses plausíveis para compreender os fenômenos naturais e sociais. É baseada em evidências coletadas através de uma série de técnicas que podem incluir, ou não, a mera observação empírica, in loco, ou a reprodução do fenômeno em circunstâncias artificiais – uma técnica, por sinal, cada vez mais contestada pela própria metodologia científica. Uma constante falácia sobre a ciência é que ela propõe “verdades absolutas” que são revistas 10, 20, 100 anos depois. Na verdade a refutação de teorias anteriormente aceitas é a própria essência do método científico e a medida do seu progresso. A ciência busca uma aproximação da verdade que é qualitativamente diferente da verdade revelada da religião. Isto, por que ela requer prova e admite, na história humana, a mudança de paradigmas ou os avanços tecnológicos que são a base do progresso tecnológico – tecnologias que facilitam a vida e aumentam o bem estar – e do progresso social  – a capacidade de apresentar soluções, se não permanentes (pois a realidade social é constantemente mutável), ao menos duradouras e flexíveis, que permitem um ajuste de acordo com as circunstâncias, desse modo garantindo que, com idas e vindas, ainda é possível apostar numa melhoria constante a longo prazo.
E, também, do progresso moral da sociedade, construindo consenso sobre padrões mínimos de justiça, moralidade e expandindo direitos políticos, sociais, econômicos e liberdades individuais, contribuindo para a derrubada de preconceitos com os quais o conservadorismo religioso sempre foi conivente, senão um firme proponente – escravidão; a exploração irrestrita e sistemática dos animais e sua condição de “coisas” aos olhos dos seres humanos; tratamento da questão operária como caso de política; restrição do espaço público a homens proprietários de terra; submissão da mulher; discriminação dos homossexuais; e assim por diante. Não é que alguma coisa dessas tenha deixado de existir. É que, se antes eram senso comum, hoje são constantemente confrontadas. Quem é racista, não se admite como tal. O machismo causa cada vez mais embaraço. Os exploradores de animais já oferecem justificativas antes mesmo de ser questionados. Logo, todos esses avanços estão, alguns mais que outros, mais na forma do discurso que na realidade, o que, ainda assim são um avanço.
E um dos maiores inimigos dessas causas progressistas é o fundamentalismo religioso, dos evangélicos nos Estados Unidos que querem restringir o ensino da teoria da evolução aos jihadistas e sionistas no Oriente Médio. Já é hora de nos levantarmos em defesa do secularismo como um pilar básico para a construção de uma sociedade justa, ética e livre. A ética não é apenas autônoma da religião. Ela tem precedência sobre a mesma, e qualquer conflito de visões entre elas deve ser decidida por princípio em favor da primeira.
E é a ética, não a religião, a única regulação à qual a ciência deve estar condicionada. A experimentação em seres humanos sem o devido esclarecimento e consentimento é errada e deve ser banida não em função de considerações religiosas, mas de parâmetros éticos advindos do nosso conhecimento da biologia, psicologia, sociologia, história e tantas outras matérias, que captam os riscos de dano e sofrimento subjetivo, por vezes irreversível, ao qual o ser humano está exposto quando submetido a determinados experimentos. Também a abolição da experimentação animal se fundamenta em todo o conhecimento adquirido hoje sobre o comportamento, os sentimentos, a consciência e o sofrimento animal.
O grande problema é que os padrões éticos que temos como basilares da nossa sociedade não são aplicados de modo coerente, mas sim seletivos. Temos padrões éticos que estão diretamente relacionados aos animais não humanos; ou podem ser facilmente estendidos a eles através do raciocínio lógico; ou estão latentes em nossa sociedade (que em geral tende a rejeitar, de modo sintomaticamente vago, a “crueldade” contra animais). Parâmetros que podem ser deduzidos do pensamento lógico e racional, apoiados sobre evidências (no sentido do conhecimento acumulado ao longo dos anos e passado de geração para geração), relatos de cientistas, debates públicos. É o caso das esmagadoras provas da sensibilidade e consciência animal, da capacidade de entender a si mesmo como indivíduo (e não me refiro só ao teste do espelho), a habilidade para solucionar problemas, construir ferramentas, seu poder de comunicar não apenas a dor (que nós, defensores dos animais, por dever de ofício, mas também por vício, enfatizamos), mas também o prazer e a afeição. E, sim, no caso dos humanos, podemos também mencionar a empatia rousseauniana inata que todos temos diante do sofrimento de nossos semelhantes  –  humanos ou não humanos.
Tais progressos tendem, porém, infelizmente, a ser embotados pela educação especista, pressão social, interesses econômicos, propaganda enganosa das corporações e governos, e a simples acomodação do indivíduo que busca apenas a satisfação imediata para seus desejos, ou uma noção equivocada do que estes interesses seriam, de algum modo, suas necessidades e direitos, e que, na perseguição destes, “os fins justificam os meios”. A mesma filosofia escravizante, destrutiva, sanguinolenta que custou tantas vidas em guerras e regimes autoritários.
Mas há motivos para sermos otimistas. A moral, ao contrário da acusação que se lança contra os veganos, não é absoluta, no sentido de imutável, a-histórica. Nossa moralidade mudou e evoluiu. Essa evolução se deu através do debate racional, da evolução da filosofia moral, da ampliação do círculo dos livres (emancipação dos escravos, das mulheres, trabalhadores, etc. – mesmo que de modo limitado e muitas vezes formal, ou seja, um processo obviamente incompleto e insuficiente, mas que, com idas e vindas, parece avançar no longo prazo).  Não esqueçamos que estamos falando de vítimas de práticas que antes eram tidas como naturais – a hipocrisia, diz o ditado, é uma homenagem que o vício presta à virtude. Essa ampliação da comunidade dos livres propiciou a incorporação de novos pontos de vista, o reconhecimento de queixas e demandas que antes eram ignoradas, reforçou na sociedade o seu senso de igualdade, e afrouxou o de hierarquia. Enfim, várias inovações que, de certo modo, forçavam os estreitos limites da moral tradicional. A evolução moral se evidencia e se retro-alimenta não só pela ampliação da comunidade de direitos, mas da própria abrangência de direitos (fato em particular sob grande ataque dos conservadores nos dias atuais, em contradição com toda a filosofia Iluminista e com as evidências empíricas do progresso social, material e político que se experimentou em grande parte do mundo Ocidental e sim, também em partes do Oriente). Outrora o único direito reconhecido ao ser humano era o da propriedade privada. Hoje há todos os direitos humanos de segunda geração que tratam dos direitos sociais e econômicos.
E, sim, a evolução moral também é tributária dos progressos da ciência, que derrubaram lentamente tabus religiosos que apoiavam teorias obscurantistas sobre a formação da Terra, sua forma, rotação, posição no sistema solar, o criacionismo, em favor da esfericidade da terra, heliocentrismo, evolução das espécies. Também questões sociais relevantes, ainda não plenamente resolvidas, estão diretamente interligadas com uma filosofia mais ampla de obscurantismo patriarcal e religioso: a submissão das mulheres, a escravidão e o dever da subserviência à autoridade, a discriminação de outras fés, dos hereges e dos sem fé, a discriminação da orientação sexual, e por aí vai. Coisas, sem meias palavras, execráveis por princípio. E o progresso científico faz parte do esforço para reverter este quadro: é com base na ciência que as teorias racialistas já foram há muito refutadas, admitindo-se a existência de uma única espécie humana, assim como qualquer alegação de superioridade do homem sobre a mulher, pesquisas que mostram que não há “degeneração”, física, moral ou psicológica, nos homossexuais, seus pais, seus filhos (naturais ou adotivos), e por aí vai. É pela secularização de nossas mentes e questionamento das tradições, e não pelo apego à fé, que essas realidades vêm, lentamente, mudando.
E este é um ponto fundamental que os defensores dos animais e veganos precisam se dar conta com urgência: a ciência foi fator fundamental para o avanço dessas causas emancipatórias, nenhuma delas ainda plenamente vencida. E também o é no caso dos direitos animais. A ciência é um método de detecção de problemas (exploração animal) e levantamento de hipóteses explicativas (revolução neolítica, domesticação, surgimento da propriedade privada), que por sua vez nos orientam a rever preconceitos (especismo), propor alternativas (fim da exploração), desenvolver métodos (veganismo, boicote), construir teorias explicativas (direitos animais). Todos esses processos são passíveis de críticas, qualificações, revisões (alguns podem discordar sobre o que constitui especismo ou sua abrangência, ou sobre formas particulares de especismo, por exemplo). Essas discordâncias não são, obviamente, na mesma direção. Algumas serão mais progressistas, outras mais moderadas. E sempre haverá a reação dos conservadores, muitos dos quais tentarão usar métodos científicos também. Mas essa disputa é própria do fazer ciência, e alguns de nós – eu inclusive – pensam, otimistamente, que é o processo que, mesmo não oferecendo garantia da verdade, é o que se mostrou mais adequado para nos aproximar da verdade.
A incerteza e mudança de paradigmas não é uma fraqueza nem uma incoerência da ciência. Nos tempos atuais, só pseudocientistas realmente creem que teorias constituem verdades absolutas. Todo o trabalho científico se resume a novos aspirantes e cientistas que põem à prova, tentam aperfeiçoar ou refutar teorias anteriores – do contrário, não haveria ciência, ela mesma. Seria apenas a constante transmissão da palavra dos sábios que desvendaram os segredos do universo. Houve um tempo em que de fato se pensou, no mundo científico, que essa verdade universal era alcançável. No século XX esta visão foi completamente, ou quase completamente, desacreditada.
Por outro lado, é igualmente uma falácia que a fé, religião, espiritualidade, ou como se queira chamar, ofereça respostas permanentes. Talvez mais duradouras, pois seu poder mistificante e impositivo – pela violência, muitas vezes – é muito forte, e exercido desde a mais tenra idade. Richard Dawkins considera, com toda razão, que a doutrinação religiosa de crianças é uma forma de abuso, tão danoso quanto o abuso moral ou o abuso sexual. Porém, não é verdade, como alegam os religiosos mais apaixonadamente anticientíficos, que as “verdades” ou são ridicularizadas ou acabam por ceder às sabedorias da fé. Vimos exemplos acima de como tanto teses sobre a natureza do universo como sobre a moralidade mudaram radicalmente desde os tempos de Abraão, Isaac, Moisés, Jesus e Maomé. Práticas como mutilamento, pena de morte, tortura, escravidão, genocídio (está lá no Primeiro Testamento), a superioridade do homem sobre a mulher não são mais aceitáveis para os padrões morais das sociedades modernas, mesmo que ainda sejam praticados em maior ou menor grau, e mesmo onde ainda são socialmente aceitos, declinam à medida que outras sociedades se modernizam. Quantos países, hoje, em suas leis, aceitariam que um pai sacrificasse seu próprio filho por ordem divina? Um pequeno, mas emblemático exemplo. Esse homem de fé sincera (sem dúvida) seria igualmente (felizmente) considerado um criminoso (também sem dúvida) talvez com o atenuante (muito provável) de ser portador de doença mental (mas sem eletrochoques, por favor).
Não há uma moralidade absoluta, por que a moralidade humana muda com o tempo, até porque as mudanças e a complexificação da sociedade criam novos dilemas e abalam velhos sistemas. A clonagem não era uma questão moral, por exemplo, até há pouco tempo, pois era tecnicamente impossível. As sociedades cada vez maiores, mais populosas e mais complexas geram igualmente dilemas. A polêmica contra o controle de armas nos Estados Unidos se funda na percepção de que o direito de ter armas é uma garantia de autodefesa do cidadão não apenas contra atentados à sua vida, família e propriedade, mas também contra o autoritarismo do Estado. Nos dias de hoje, esse argumento é no mínimo duvidoso. O mesmo se dá sobre outros processos históricos. As experiências do Stalinismo, do Maoísmo, não podem ser ignoradas por nenhuma corrente socialista e demandam a revisão de ao menos um elemento fundamental de sua filosofia: o instrumentalismo ético que acentuou-se nessas tendências. O mundo muda, as ideias mudam, os valores mudam.
A moralidade muda, mesmo que a religião permaneça. As pessoas têm uma abordagem instrumental da fé: extraem aquilo que lhes é útil, “moderno”, e declaram arcaico aquilo que não lhes apraz. Isso é um ato intelectualmente questionável, mas do ponto de vista pragmático, positivo. Um radical cristão ou islâmico, nos diz Dawkins, soa, muitas vezes, mais honesto e coerente. Mas a moderação do discurso religioso é parte do processo de secularização e, com boa vontade, sinal de que um dia a religião se torne primeiro uma mera questão da vida privada e, posteriormente – para a alegria e emancipação da humanidade, e sua definitiva evolução ética e moral –, se torne obsoleta.
Mas há, sim, uma ética universal que pode ser alcança por um processo racional, que congrega as contribuição da filosofia, da ciência, do debate político, da pesquisa social. Um processo racional, baseado em dados objetivos e que, como a ciência, aproxima-se – idealmente – da verdade. E deita – idealmente – as fundações para uma evolução social contínua – sujeita a retrocessos, por certo, mas que pelo conservação do conhecimento adquirido e pela “eterna vigilância” daqueles comprometidos com a expansão da comunidade moral, da comunidades dos livres.
Na verdade, o argumento mais usado contra a ciência é um que pode ser facilmente aplicado em favor do progresso moral e social. A ciência tem muita dificuldade em comprovar teorias, é verdade. Mas no processo ela desacredita, refuta, sistematicamente, teorias obscurantistas, conservadoras, tradicionalistas. Uma vez que uma teoria foi sistematicamente desacreditada, por cientistas de diferentes lugares, eras, credos, ela não pode mais ser sustentada num debate acadêmico honesto. Esse é o caso da negação de Descartes à senciência animal. Por outro lado, você pode ter dificuldade em refutar a afirmação de que animais não sentem dor durante o abate “humanitário”. Mas você pode demonstrar, por todas as evidências já compiladas, que aquele animal deseja viver. E o argumento em favor da preservação desta vida não pode se apoiar se não num discurso lógico-racional.
É assim que o reconhecimento da dignidade humana avançou muito em três sentidos nos últimos dois séculos – primeiro, na sua universalidade (cada vez mais engloba toda a humanidade; distinções sociais, étnicas, sexuais, ideológicas, etc., são cada vez mais tidas como inaceitáveis); segundo, na sua abrangência em cada indivíduo (o alcance das garantias – a pena de morte é um exemplo; é cada vez menos aceita, mesmo se “humanitária”, diferente do que ocorria na época dos Iluministas clássicos); terceiro, na sua aceitação (tradições políticas e culturais tendem cada vez mais a incorporar o discurso dos direitos humanos – às vezes de forma questionável, restritiva ou oportunista, mas ainda assim significativo de que o poder dessa ideia não pode mais ser ignorado ou meramente rechaçado).
Provavelmente nunca chegaremos a esta ética universal. Mas podemos e devemos nos aproximar cada vez mais dela – premissas básicas que orientem nossa conduta nas relações interpessoais, econômicas, sociais e políticas. E os direitos animais fazem parte deste processo. E a ciência pode e deve ser nossa aliada nesta luta política.
Veganos, defensores dos direitos animais e humanos, e defensores da ética em geral: não se deixem intimidar. Que a ética foi influenciada pela religião, ou foi subsumida a ela em várias civilizações e por muitos séculos, é inegável. Porém, nunca se esqueçam desta premissa fundamental: a ética é autônoma da religião. De fato, ela subsiste e floresce, longe dela. As fontes da ética são o questionamento e o conhecimento humanos. Ela progride com o progresso de ambos.
Em homenagem tardia ao Dia da Blasfêmia, 30 de Setembro, e grato ao Professor Ignacio Cano por compartilhar seus conhecimentos de metodologia e filosofia da ciência.
fonte: anda

Nenhum comentário:

Postar um comentário

verdade na expressão