Muita saliva e tinta de teólogos, biólogos e humanistas foram gastas para sacramentar a noção de unicidade dos humanos. O conceito de que só o homem é dotado de determinadas capacidades cognitivas, fonte e seiva da linguagem, da cultura e outras habilidades igualmente exclusivas, como, por exemplo, levantar hipóteses, discuti-las e testá-las, continua incontestado. A despeito do que os animais possam criar e manipular, somos os únicos seres vivos capazes de escrever um romance, pintar uma obra-prima, inventar aparelhos engenhosos e montar um mensalão ou um cartel de drogas.
Mas não os únicos dotados de inteligência, sentimentos e outros atributos ditos humanos. Algumas espécies do reino animal também possuem consciência, reiterou um grupo de cientistas recentemente reunidos em Cambridge, na Inglaterra.
Não foi uma declaração leviana, urdida ou estimulada por alguma entidade protetora de animais, mas uma afirmativa lavrada em documento, cientificamente idôneo, apresentado no dia 7 deste mês durante a conferência anual do Francis Crick Memorial em torno das últimas pesquisas sobre o cérebro e seus mistérios.
Há muito se desconfiava que ao menos mamíferos como macacos, elefantes, cães, gatos, e criaturas do mar como golfinhos e polvos (vide Paul, o molusco alemão que previa os resultados da Copa do Mundo de 2010) são providos de consciência. Faltava o aval da ciência, que veio sob a forma de um manifesto assinado por 13 respeitáveis neurocientistas do MIT, Caltech e Max Planck Institute. Entre eles, o canadense Philip Low, criador do iBrain, dispositivo destinado a ajudar o físico Stephen Hawking a minorar as limitações que uma doença neurodegenerativa progressiva e incurável lhe impõe há mais de 40 anos.
Com o respaldo de uma década e meia de estudos do fenômeno da consciência, do comportamento animal, da rede neural, da genética e da anatomia do cérebro, cada vez mais refinados por novas tecnologias de investigação, concluiu-se que as estruturas nervosas ativadas no cérebro de um bicho assemelham-se às de um humano quando também sente prazer, medo, dor e até piedade.
O que diriam os estoicos da Grécia, Descartes e Kant? Muito influentes no mundo de guerras e incertezas em que viveram, os estoicos consideravam os animais desprovidos de inteligência e negavam, consequentemente, qualquer obrigação moral nossa com eles. Com o seu “cogito, ergo sum” (penso, logo existo), Descartes radicalizou a divisão aristotélica (razão/paixão, corpo/mente), reiterando a tese da inferioridade inata dos animais e sua absoluta e irrestrita submissão aos humanos.
David Hume fez o mesmo com o primado da razão defendido por Kant. A neurociência desempatou a contenda a favor dos que não consideram a emoção inimiga da razão, mas sua indispensável cúmplice. Testes de ressonância magnética comprovaram a falácia neurológica do dualismo cartesiano, abrindo caminho para o reconhecimento da inteligência, da sensibilidade, e da consciência proto-humana dos animais. Foi também uma vitória póstuma para os utilitaristas Jeremy Bentham e John Stuart Mill, que se preocupavam com o bem-estar dos bichos e serviram de paradigmas para o mais notável crítico da crueldade com os animais da atualidade, Peter Singer.
Em 55 a.C., o romano Pompeu patrocinou um grande espetáculo com homens e elefantes durante o qual os paquidermes, inferiorizados e encurralados na arena, tentaram e conseguiram despertar a compaixão da assistência por meio de gritos e gestos pungentes. Com pena dos elefantes, a multidão execrou Pompeu, reviravolta presenciada e comentada por Cícero. É um dos registros mais remotos de que os quadrúpedes, a seu modo, também cogitam e sabem atrair a solidariedade dos bípedes.
Elefantes são animais intensamente sociais, emotivos e solidários. Presenciei uma comovente demonstração de solidariedade e socorro a um elefante aparentemente doente por meia dúzia de outros, durante um safári fotográfico pelo Parque Nacional de Serengeti, na Tanzânia. Foi uma revelação, mesmo para quem, como eu, conhecia alguns dados posteriormente reunidos em Quando os Elefantes Choram (de Jeffrey Moussaieff Masson e Susan McCarthy), e havia lido as “conversas” de Konrad Lorenz com as bestas, as aves e os peixes, os ensaios de Diane Ackerman sobre as baleias, os crocodilos e outros bichos, e acompanhado pela imprensa as pesquisas de Jane Goodall com os chimpanzés, as de Dian Fossey com os gorilas e as de Sally Coxe com os socialmente exemplares macacos bonobos do Congo.
No reino da bicharada, os antropocêntricos fundamentalistas perdem todas. Até ratos explorados em laboratórios são dados a gestos de solidariedade e sacrifício, revelou faz pouco tempo uma experiência na Suíça. Muita gente ainda ignora que os porcos são muito inteligentes e sensíveis, além de limpíssimos por natureza (o primeiro editor da revista Granta, Bill Buford, cria em casa um suíno como se fosse um cachorro), e que as baleias, orcas, cachalotes e golfinhos têm o triplo das células fusiformes dos cérebros humanos. Essas células são fundamentais para o desenvolvimento da empatia.
Em 2006 descobriram no zoológico do Bronx um elefante que se reconhecia no espelho. E depois outro, e mais outro. Bichos que passam no teste do espelho, como os citados elefantes, certos primatas, golfinhos e uma espécie de pássaro chamada pica-pica, são supostamente mais próximos dos humanos e mais necessitados de nossa proteção. Foi dessa premissa que a biopsicóloga Diana Reiss, do Hunter College, partiu para sua pesquisa sobre a capacidade perceptiva e interativa de determinados mamíferos.
Reiss é uma das signatárias do Manifesto de Cambridge. Como os demais signatários, ela espera que, diante das evidências de que os animais “pensam, logo sofrem” (cogito, ergo patior?), a sociedade dos humanos passe a tratá-los com mais respeito, dignidade e carinho.
Fonte: Estadão
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