sábado, 16 de junho de 2012

Tráfico de animais pode espalhar fungo letal para anfíbios

O Dendrobates tinctorius, colorido e sensível (Foto: Fabio Colombini)


Um inesperado desvio de rota evidenciou quão maléfico pode ser o fungo Batrachochytrium dendrobatidis – ou Bd – para os anfíbios brasileiros. Em junho de 2006, Cátia Dejuste de Paula procurava parasitas e microrganismos em anfíbios para sua pesquisa de doutorado na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de São Paulo (USP) quando chegou um pedido para que examinasse a possível causa de morte de 50 anfíbios de duas espécies diferentes em um zoológico particular do interior paulista.
Depois de pesar todas as outras possibilidades, a conclusão a que ela, José Luiz Catão Dias, coordenador associado do Laboratório de Patologia Comparada de Animais Selvagens (Lapcom) da USP, e colaboradores dos Estados Unidos chegaram é que o Bd é que deve ter sido o responsável pela morte de boa parte dos animais examinados. É uma indicação direta, talvez a primeira, da letalidade desse fungo no país. Há anos o Bd tem sido associado com a redução – às vezes eliminação – de populações de sapos, rãs e pererecas mundo afora; as espécies brasileiras pareciam imunes a esse microrganismo.
Esse episódio é uma evidência – do mesmo modo, talvez a primeira – de que o tráfico de animais pode favorecer a disseminação de fungos em anfíbios mantidos em cativeiro, já que os sapos haviam sido apreendidos antes de serem enviados, com autorização de órgãos do governo federal, para um zoológico particular.  Detalhado na revista Diseases of Aquatic Organisms, o estudo sugere a possibilidade de contágio entre animais mantidos em cativeiro, reforçando a necessidade de medidas preventivas como a quarentena e banhos com substâncias antifúngicas.
É também uma clara indicação de que algumas espécies são sensíveis ao fungo, enquanto outras parecem resistentes. 
Cátia detectou o fungo, em vários estágios de desenvolvimento, na pele em 20 dos 30 Dendrobates tinctorius, ou sapo-garimpeiro, bicho colorido, com a pele malhada de preto com manchas verdes ou azuis, embora venenoso. Mas não havia sinais do fungo em nenhum dos 20 animais da outra espécie, Adelphobates galactonotus, também venenosa e colorida, que devem ter morrido por outra razão.
Adelphobates galactonotus, indiferente ao avassalador fungo Bd (Foto: Luiz Felipe Toledo)
Já se sabia que algumas espécies podem ser resistentes ao fungo, mas essa capacidade ainda não havia sido verificada de modo tão direto como com os Adelphobates galactonotus. As encorpadas rãs-touro-gigantes (Lithobates catesbianus), que podem atingir 20 centímetros de comprimento e um peso de 1,5 quilograma, geralmente verdes ou bronzeadas, representam a espécie mais citada como exemplo de convivência pacífica com o microrganismo e agora considerada como possível transmissora para outras espécies, alertam os pesquisadores.
Importada desde a década de 1930 dos Estados Unidos para ser criada comercialmente, mas abandonada depois de a venda de pele e carne não ter atraído muitos interessados, a rã-touro se espalhou pelo país, já que se multiplica com facilidade e se adapta a ambientes úmidos ou secos. Mas não é o único transportador involuntário de fungos. Em dezembro de 2011, na Diseases of Aquatic Organisms, pesquisadores da Universidade McGill, no Canadá, alertaram para o fato de lagartos e cobras serem vetores desse microrganismo, assim contribuindo para sua disseminação.
“Embora possa parasitar animais, o Bd não precisa deles como hospedeiros, porque consegue viver à custa de matéria orgânica em ambientes aquáticos, como outros fungos que sobrevivem no solo, em cascas de árvores ou folhas em decomposição”, comenta Selene Dall’Acqua Coutinho, professora da Universidade Paulista (Unip) que trabalha com fungos há 30 anos e fez as análises de biologia molecular que complementaram os exames de Cátia e Catão. “Provavelmente, o Bd está bastante disseminado no ambiente.”
Foi o que Cátia, atualmente pesquisadora da Wildlife Conservation Society no Brasil, observou: “Onde se procura o fungo, se acha”. No doutorado, concluído em 2011, ela procurou microrganismos e parasitas em 120 animais de 33 espécies diferentes de sapos e rãs coletados na estação biológica de Boraceia, uma área de floresta úmida de 100 hectares pertencente à USP no município de Salesópolis. Ela encontrou parasitas – principalmente no intestino – em quase metade (55) dos animais examinados. O microrganismo mais comum, encontrado em 22 sapos (19,1% do total), foi o Bd, identificado por meio de exames microscópicos e de DNA, a partir de uma amostra cedida por Alan Pessier, do zoológico de San Diego, Califórnia.
Menos sapos nas matas
“Vimos o fungo, mas os animais aparentemente estavam saudáveis, sem lesões ou alterações na pele”, diz Cátia. Nem ela nem outros pesquisadores encontraram anfíbios doentes em Boraceia ou em outros lugares, mas observaram que a diversidade de espécies e a quantidade de anfíbios estão menores que há alguns anos. O Bd se aloja na pele fina e úmida dos anfíbios e, como pesquisadores dos Estados Unidos e da Austrália indicaram em 2009, altera o equilíbrio de eletrólitos (íons) dos músculos, fazendo algumas espécies de animais morrerem repentinamente de colapso cardíaco.
As setas indicam o fungo na pele de um sapo: animais infectados não dão sinais de estarem doentes (Foto: Catia Dejuste de Paula e Luiz Catão-Dias /USP)
O biólogo e professor da USP Miguel Urbano Trefaut Rodrigues conta que anos atrás sapos dos gêneros Hylodes eram comuns no parque nacional de Caparaó, na divisa dos estados do Espírito Santo e de Minas Gerais. No ano passado ele andou por lá e notou que haviam desaparecido: “Fiquei chocado”. Os sapos do gênero Allobates também escassearam nas matas do Espírito Santo e Rio de Janeiro.  “Um dendrobatídeo, o Anomaloglossus, era abundante na serra de Tepequém, em Roraima, víamos 10, 20 nas beiras das cachoeiras. Agora, nenhum.”
Em 2005 Ana Carnaval, da Universidade da Califórnia em Berkeley, Rodrigues, seus alunos e biólogos da Universidade de Costa Rica e do Rio de Janeiro, depois de examinarem 96 sapos de 25 espécies colhidas em 10 pontos diferentes da mata atlântica, ampliaram bastante a área geográfica de alcance do fungo, que, eles concluíram, pode viver em altitudes que variam de 100 a 2.400 metros. Em janeiro deste ano, uma equipe norte-americana da Universidade Cornell, em colaboração com pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), indicou que o fungo pode viver em ambientes variados e também em baixas altitudes da mata atlântica. Tudo o que podem fazer por enquanto é seguir os rastros do fungo, já que ainda é difícil cultivar esse organismo em laboratório para estudar em detalhes o seu comportamento.
“As espécies de anfíbios que estão desaparecendo vivem em áreas preservadas do Brasil, da América Central e da Oceania, onde não existem córregos sujos ou poluentes que poderiam ser fatais”, diz Catão. O Brasil é um dos países com uma das maiores diversidades de anfíbios, com quase 900 espécies já identificadas, das quais 16 são consideradas ameaçadas de extinção e uma já extinta. A redução das populações de anfíbios poderia significar um aumento das populações de insetos transmissores de doenças como dengue, malária, febre amarela, “considerando apenas uma visão antropocêntrica”, diz Catão. Em termos mais amplos, pode dificultar a sobrevivência de outros animais, como aves e répteis, que se alimentam de sapos, rãs e pererecas.
Para ele, o fungo é uma das causas de uma extinção em massa de anfíbios, equivalente a outras já ocorridas na história da Terra, embora não seja o único responsável: “Temos de ter a cabeça aberta para outras possíveis causas”. As principais são a perda ou redução de hábitats e a proliferação de outros parasitas, como os ranavírus, um grupo de vírus letal para os girinos, normalmente resistentes ao fungo.
“Fungos são oportunistas e avançam mais facilmente quando os hospedeiros estão sob estresse ou algum tipo de pressão ambiental”, comenta Selene, oferecendo um exemplo próximo dos humanos: a candidíase, que se manifesta quando as defesas do organismo estão debilitadas. Ela acredita que o Bd não seja ainda tão adaptado a ambientes diferentes quanto os fungos dermatófitos, que causam micoses em animais e em pessoas e se espalham por ambientes domésticos.
No ano passado, uma estudante de veterinária da Unip, Sândara Pimentel Sguario, isolou colônias de fungos de outra espécie, Mycroscoporum canis, em um gato que o namorado dela havia lhe deixado e ela mantinha no quarto. Selene sugeriu e ela colheu amostras de material não só do gato, mas também do tapete, da cama, da cadeira do computador – por todo o quarto – e verificaram que se tratava do mesmo fungo que parasitava o gato. “Ainda não li nem vi nada que indique que o Bd possa infectar as pessoas ou outros mamíferos”, diz Selene. “Em uma perspectiva evolucionária, talvez demore para atingir ou nunca atinja as pessoas.”
Fonte: FAPESP


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