sexta-feira, 22 de julho de 2011

AMAZÔNIA - Ainda há tempo?

Exótica e esplendorosa, mas tratada com ambigüidade e distanciamento, a Amazônia pode ser salva, mas antes é preciso conhecê-la

Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Jutaí. Foto: Dida Sampaio/AE

Ainda é possível salvar a Amazônia? Há tempos, essa pergunta desafia as consciências brasileiras sem que para ela, ao longo dos anos e dos governos, o Estado tenha formulado uma resposta confiável e definitiva. A Amazônia tem sido mais conhecida pelas ameaças que pairam sobre ela. As notícias sobre essa exótica e esplendorosa região estão quase sempre associadas à devastação da floresta, à contaminação das águas, à extinção da biodiversidade, à degradação dos seus habitantes nativos. Repete-se sempre a especulação de que o Brasil não teria competência para geri-la. Essa seqüência de notícias ruins tem fundamentos reais. O Brasil tem tratado com ambigüidade e distanciamento o maior tesouro biológico do planeta, que lhe pertence.

Durante três meses percorremos a Amazônia para revelar as tragédias e conhecer as experiências que poderão preservar a mais rica biodiversidade da Terra. Encontramos áreas completamente arrasadas. Mas descobrimos iniciativas em reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentável que devolvem a esperança de uma exploração ambientalmente correta. Visitamos lideranças indígenas e povoados empobrecidos. Ouvimos militares que atuam na região e pesquisadores que são obrigados a trabalhar sem proteção legal.

Desbravamos uma realidade superlativa. A Amazônia cobre metade do território nacional. Dentro dela caberia a área de praticamente toda a Europa (excluindo os países da antiga União Soviética). O bioma amazônico, espalhado por nove países da América do Sul, tem 6,6 milhões de quilômetros quadrados; o Brasil é dono de 65% do total, com 4,2 milhões de km² de floresta quente, úmida e repleta de espécies.

A região é central no debate sobre o aquecimento global porque cerca de 75% das emissões de CO2 do Brasil têm origem no desmatamento. Mas é aí que entra a novidade: cruzamento de dados indica que a Amazônia tem capacidade para retirar por ano da atmosfera, pela fotossíntese, até 2 bilhões de toneladas de dióxido de carbono, mais do que todo o País emite, cerca de 1,5 bilhão de toneladas.

O desflorestamento já consumiu 17% da Amazônia – ou 700 mil km², o equivalente à área somada de Minas Gerais, Rio e Espírito Santo. Ainda assim, ela é, de longe, a maior extensão contínua de floresta tropical do mundo. Em seus rios, há 2 mil espécies de peixes (na Europa inteira há 200). Num círculo de 150 km ao redor de Manaus, encontram-se mais espécies de aves do que no Canadá e nos EUA, juntos. Numa só árvore da Amazônia foram identificadas 95 espécies de formigas: 10 a menos do que as que existem em toda a Alemanha.

O que parece ser uma floresta homogênea é, na verdade, um mosaico de paisagens e ecossistemas muito diferenciados – planaltos, depressões, montanhas, terrenos alagados e de terra firme, rios de todos os tamanhos, águas de cores variadas, algumas ácidas, outras alcalinas, florestas úmidas, florestas secas, savanas, pântanos e manguezais.

Esse impressionante conjunto atrai a cobiça dos aventureiros e parece inibir a ação do Estado. Na hora de tomar decisões sobre a Amazônia, os governos parecem ficar sempre com um pé no bote e outro no barranco, hesitantes ante a escala grandiosa, a diversidade impactante, o desconhecimento científico de como tratar cada questão e dar inteireza e integração aos planos. Se não estimulam alguma ocupação, atiçam a cobiça internacional; se planejam aproveitar os recursos, são acusados de leniência com a devastação.

Agora, parece haver uma firme tendência consensual para o modelo de desenvolvimento sustentado, que significa extrair recursos da floresta sem devastá-la. No artigo que escreveu especialmente para esta edição, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva diz que “as soluções para a Amazônia têm de ser maiores que governos e mandatos, têm de ser assumidas pela sociedade brasileira e suas instituições”.

Algumas reservas federais e estaduais do Amazonas já praticam esse conceito, com importantes avanços. Na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Cujubim, com 24 mil km², maior que Israel, a dez dias de barco de Jutaí, nas profundezas do oeste amazônico, a extração de madeira está contida, embora a lei da sobrevivência ainda leve os moradores a pescar pirarucus e pegar tracajás para vender. Nelas, muitos ribeirinhos já abandonaram práticas ilegais, embora ainda não cumpram todas as regras.

Até chegar a esse modelo, o País optou pelo meio-termo e se ausentou, deixando um perigoso vazio institucional. É nas trilhas desse vazio, desfraldando falsas bandeiras do progresso, que aventureiros nacionais e internacionais invadiram a floresta e desataram as tragédias.

A maior delas é a devastação. Depois de cair pela metade entre 2000 e 2006, o desmatamento voltou a crescer no verão amazônico que se encerrou em outubro – 14 mil km² de florestas foram abaixo no último ano, o que dá quase um Líbano e meio.

Na alta estação da queimada, a fumaça encobre o sol nas estradas, obrigando os motoristas a acender os faróis durante o dia. Em geral, a floresta cai para que sejam feitos pastos; quando eles se degradam, os pecuaristas cedem o espaço a plantações de soja. As ocupações são feitas, quase sempre, por meio de grilagem ou títulos cedidos pelo Incra.

A ciência apenas tangencia essa diversidade. Existem menos doutores em toda a Amazônia Legal (3.241) do que na Universidade de São Paulo (5.028). Deles, menos da metade se dedica a pesquisas e outra metade está a caminho da aposentadoria. Só 30% dos trabalhos científicos publicados no mundo sobre a Amazônia são produzidos no Brasil e só 9% são de pesquisadores locais. Como vamos entender um ecossistema se nem conhecemos as espécies que fazem parte dele?

A ocupação da terra amazônica beira o caos. Depois da Constituição de 1988, os índios passaram a ser donos de 13% do território nacional, inclusive regiões de jazidas minerais. As antigas fórmulas de se relacionar com o índio foram abandonadas: a Igreja foi substituída por uma maciça presença das organizações não-governamentais (ONGs), que almejam transformar os indígenas em gestores de suas próprias políticas. Hoje, líderes indígenas formados em universidades dirigem entidades e se espelham em Evo Morales, o índio aimará que preside a Bolívia. Mas, como pararam de caçar e pescar, a comida das aldeias depende de cestas básicas e do Bolsa-Família.

A chegada maciça das ONGs, muitas delas estrangeiras, preocupa o meio militar. Entre 1999 e 2006, 29 mil delas receberam R$ 33 bilhões de recursos federais – e não se sabe quanto arrecadam no exterior. Para as Forças Armadas, o novo Plano Estratégico de Defesa Nacional, a ser anunciado em breve, aumentará a presença do Exército na região e facilitará a fiscalização das ONGs. O Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), que já consumiu US$ 1,4 bilhão ao longo de sete anos, hoje cobre com eficácia 5,5 milhões de km², mas o Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam), civil, funciona precariamente.

Os governos e a ciência negligenciam a Amazônia; os brasileiros comuns a ignoram. No ano passado, enquanto 200 mil turistas brasileiros visitaram a Disney World, na Flórida, apenas 150 mil visitaram o Estado do Amazonas, que abarca a parte mais preservada da floresta (tem apenas 2% desmatados). Em compensação, um quinto dos 5 milhões de turistas estrangeiros que anualmente visitam o Brasil vai à Amazônia – mais que o dobro dos brasileiros.

O distanciamento que nos separa da Amazônia faz com que a região seja, ao mesmo tempo, ambígua fonte de orgulho e de aborrecimento, deslumbramento e estranhamento, atração e repulsa. Mas não há como negar a presença dela em nossa vida. Quando um paulista bebe um copo d’água, garante a ciência, está bebendo água amazônica. O regime de chuvas do Sul-Sudeste depende da umidade produzida pela floresta e exportada pelos “rios voadores”.

Para salvar a Amazônia é preciso conhecê-la. Com seu mistério e sua importância vital, ela é um irresistível objeto de interesse e curiosidade. Para isso, as reportagens desta edição pretendem servir de matéria-prima.

 



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