CHIPRE
Um papa-amoras-comum, a caminho de invernar na África, é capturado por uma vareta viscosa.
Em um mercado no vilarejo turístico de Marsa Matruh, na costa do Egito, examino as gaiolas repletas de rolas e codornas quando um dos vendedores nota a desaprovação em meu rosto e, sarcástico, grita em árabe: “Vocês, americanos, se sentem mal pelas aves. Mas, na hora de bombardear a terra dos outros, não sentem nada”.
Eu poderia ter respondido que é possível se sentir mal tanto pelos animais como pelas bombas, e que dois erros não fazem um acerto. Porém, me ocorre que o vendedor de pássaros diz algo apropriado do problema da preservação da natureza em um mundo dilacerado por conflitos humanos, algo que não pode ser refutado com facilidade. Ele beija os dedos para mostrar quão deliciosos são aqueles pássaros, enquanto continuo com a testa franzida diante das gaiolas.
A situação ao redor do Mediterrâneo é chocante: todos os anos, de um extremo a outro do mar, centenas de milhões de aves canoras e outras espécies migratórias são mortas para serem consumidas, por lucro, esporte ou diversão. A matança é indiscriminada, com forte impacto sobre espécies já fragilizadas pela destruição ou fragmentação de hábitats reprodutivos. Nessa região, as pessoas abatem grous, cegonhas e grandes aves de rapina para as quais os governos mais ao norte mantêm programas de conservação milionários. Por todo o continente europeu, as populações de aves estão em acentuado declínio.
Os caçadores italianos, legais e ilegais, são os mais notórios: em grande parte do ano, nos bosques e várzeas do interior da Itália, ouvem-se os disparos das armas de fogo e os estalos das armadilhas. Os franceses, tão ciosos de sua culinária, continuam a consumir a sombria (Emberiza hortulana), e a lista bem longa de aves que podem ser caçadas na França inclui muitas espécies costeiras ameaçadas. O uso de armadilhas para capturar as canoras ainda é comum em regiões da Espanha. Os malteses, frustrados com a inexistência de pássaros nativos, dizimam as aves de rapina em migração nos céus. Os cipriotas abatem toutinegras em escala industrial, a fim de consumi-las, mesmo que isso seja fora da lei.
Na União Europeia (UE), contudo, ao menos vigoram restrições formais à caça de aves migratórias. A opinião pública local tende a favorecer a preservação, e diversos grupos de proteção da natureza ajudam os governos a fazer com que as leis sejam respeitadas. Mas a situação das migrantes não é nada boa nos países mediterrânicos que não fazem parte da UE. Na verdade, quando visitei a Albânia e o Egito no ano passado, constatei que ela piora de modo dramático.
Em fevereiro de 2012, o Leste Europeu registrou as temperaturas mais baixas dos últimos 50 anos. Os gansos que costumam invernar no vale do Danúbio seguiram para o sul, a fim de escapar ao frio, e meio milhão deles acabaram nas planícies da Albânia, esfomeados e exaustos. Foram todos exterminados. Homens com velhas Kalashnikovs soviéticas empunhadas dizimaram as aves, enquanto mulheres e crianças se encarregavam de levar as carcaças aos povoados para serem vendidas a restaurantes. Muitos desses gansos haviam sido marcados por pesquisadores de países ao norte; um dos caçadores me contou que vira uma etiqueta da Groenlândia. Embora ninguém na Albânia esteja passando fome, o país tem uma das rendas per capita mais baixas da Europa. A chegada inesperada de gansos comerciáveis foi uma bonança.
Um marreco morto boia entre as iscas que o atraíram para o raio de alcance das armas de seus algozes humanos. Poucos albaneses tinham rifles ou espingardas antes da pilhagem dos arsenais militares de 1997. O país tornou-se letal para as aves migratórias - Foto: David Guttenfelder
As rotas de migração mais a leste na Europa passam pelos Bálcãs. Na Albânia, o litoral do Adriático, que em outros trechos é montanhoso e intimidante, se estende em um extraordinário sistema de várzeas, lagos e planícies costeiras. Durante milênios, as aves que seguiam para o norte desde a África podiam descansar e se recuperar nessa região, para então seguir sobrevoando os Alpes Dináricos até as áreas de reprodução. Também tinham opção de parar ali de novo, no outono, antes de tornar a atravessar o Mediterrâneo.
Quatro décadas de ditadura marxista de Enver Hoxha destruíram a estrutura da sociedade e as tradições albanesas, mas, ainda assim, essa não foi uma época ruim para os pássaros. Hoxha reservou os privilégios da caça e da propriedade particular de armas para si mesmo e para comparsas confiáveis. No entanto, esse punhado de caçadores teve impacto irrelevante em milhões de aves migratórias que passaram pelo território albanês, e o atraso da economia centralizada do país, assim como sua falta de atração para turistas estrangeiros, assegurou que permanecesse intocada a riqueza dos hábitats litorâneos.
Com a morte de Hoxha, em 1985, o país passou por difícil transição rumo a uma economia de mercado, o que incluiu um período de quase anarquia, no qual os arsenais militares foram saqueados por cidadãos comuns. Mesmo após a restauração da ordem, os albaneses guardaram essas armas, e continuaram hostis a qualquer tipo de regulamentação. Com o renascimento econômico, a aquisição de espingardas caras, e seu uso para fazer o que antes era restrito apenas à elite – abater aves –, se tornou uma das maneiras da geração de homens jovens em Tirana ostentar a nova prosperidade.
Nessa mesma cidade albanesa, semanas depois da grande onda de frio em fevereiro, conheço uma jovem muito contrariada com o fato de seu marido ter adotado a caça como novo passatempo. Ela me conta que haviam brigado por causa da arma, cuja compra o levara a se endividar. Ele mantinha a espingarda no porta-malas do Mercedes 1986 do casal, e a jovem descreve como, certa vez, o viu parar à beira da estrada, saltar do carro e começar a disparar contra os passarinhos pousados em um fio de eletricidade. “Eu queria compreender isso”, comento. “Não dá para entender!”, exclama ela. “Já conversamos, e continuo sem ver o propósito disso...” Pega o celular, liga para o marido e lhe pede para vir nos encontrar.
“É algo que ficou na moda, e meus amigos me convenceram”, explica o homem, com expressão envergonhada. “Não sou caçador de verdade. Mas, o próprio fato de eu ter começado tarde – depois dos 40 –, a sensação boa de ser dono de uma arma autorizada, uma espingarda poderosa, e de nunca ter abatido qualquer ave antes, bem, tudo isso contribuiu para tornar a coisa divertida. Eu costumava sair sozinho e dirigir por uma hora até as colinas. Não temos áreas protegidas bem sinalizadas; então, eu atirava em tudo o que aparecia. Mas a graça vai sumindo quando se pensa nos animais que estão sendo mortos.”
“E o que você acha disso?”, pergunto. Ele franze a testa. “Sinto desconforto. Acabaram os pássaros; agora precisamos andar durante horas até avistar alguma coisa. É assustador. Eu até gostaria que o governo proibisse a caça durante cinco anos para que os animais pudessem se recuperar.”
fonte:viajeaqui.abril.
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