sábado, 10 de dezembro de 2011

Reportagem Novos conhecimentos e movimentos sociais questionam os usos dos animais


Por Aline Naoe
10/12/2011
No dia 1º de novembro de 1994, a organização inglesa Vegan Society completava 50 anos. A data foi escolhida como o Dia Mundial Vegano e é comemorada hoje em várias partes do mundo. Foi nesse ano que Donald Watson, fundador da organização, criou o termo vegan, com o objetivo de significar muito mais que vegetarianismo – uma opção alimentar -, mas uma nova atitude, recusando qualquer tipo de produto ou prática que envolvesse a exploração dos animais. Embora seja um movimento recente, as origens do veganismo remetem a uma mudança de pensamento muito mais ampla.
“Tivemos um longo período, dentro do ambiente acadêmico e científico, em que se negou a existência de sentimentos dos animais. Essa negação começa principalmente com Descartes, que dizia que os animais não sentiam”, pontua Carla Molento, coordenadora do Laboratório de Bem-Estar Animal da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Segundo a médica veterinária, é a partir das evidências de sentimentos e capacidades dos animais que se começa a questionar a mensagem de Descartes. “Essa nova forma de entendê-los dentro do contexto científico começa a ganhar força a partir dos anos 1960 e 70, porque começamos a ter um reconhecimento científico dos animais como seres sencientes, ou seja, como seres capazes de sentir prazer, dor, sofrimento, e a partir do momento que existe esse reconhecimento a responsabilidade ética vem imediatamente à tona”, afirma.
É a característica da senciência a principal defesa do veganismo contra o uso dos animais, não só na alimentação, mas também em testes, esportes, vestuários e entretenimento, como em touradas e circos. “O cerne da questão são os direitos animais, não se tratando de uma iniciativa humanitária ou piedosa. Entendemos que eles são seres sencientes, capazes de sentir dor, medo, frio, entre outras sensações, e que por isso prezam pela sua vida e integridade física”, defende o nutricionista vegano George Guimarães. Se o desenvolvimento científico foi um dos fatores que impulsionaram a mudança de pensamento em favor dos animais, hoje seu uso para a ciência também vem sendo questionado.
Comer animais
A adoção de novos modelos alimentares encontra justificativas relacionadas, principalmente, a valores, saúde e ao meio ambiente. Para a socióloga Maria Eunice Maciel, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), embora se encontre vegetarianos que o são em função de argumentos relacionados com a saúde, “cada vez mais se consolida o discurso que tenta colocar em questão a relação cultura (e humanidade) e a natureza”. É o que faz o veganismo, ao propor uma nova maneira de encarar a relação entre humanos e não humanos. “Ser vegano não é fácil no ocidente de hoje. Não é uma tradição como em países do oriente em que estas diferenças convivem”, afirma Maciel.
“Os hábitos alimentares são bens culturais que podem identificar uma nação, uma região, um grupo. O que se come traduz um sentimento de pertencimento cultural e de comunhão”, afirma a socióloga Juliana Abonizio, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). As escolhas alimentares, portanto, seriam reflexo de uma multiplicidade cultural e também de uma sociedade fragmentária. No caso do vegetarianismo, Abonizio acredita que se trata mais de uma opção individual do que a constituição de um grupo específico. “Apesar de haver grupos e militantes vegetarianos que fazem propaganda de sua opção alimentar, vemos que o ato de comer distancia-se do grupo, da família, da nação, para ser considerado uma escolha individual elaborada reflexivamente, diante das múltiplas possibilidades de escolher o que se come”, acredita.
As restrições no consumo de carne podem ser vistas também em outros grupos, como os religiosos, que manifestam na alimentação sua relação com os animais. É o caso dos judeus, cujos alimentos devem passar pelo ritual kasher, e dos muçulmanos, cujo abate é chamado de halal. Em ambos os casos, a motivação religiosa inclui não infringir sofrimento ao animal. Segundo informações da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO Brasil), o mercado brasileiro tem buscado qualificar-se para atender a esses públicos, já que exporta carne bovina e aves para o Oriente Médio.
Abate humanitário e bem-estar animal
Segundo Roberto Roça, médico veterinário da Universidade Estadual Paulista (Unesp), embora a preocupação do mercado com o bem-estar animal possa ser considerada recente, a proteção dos animais sempre foi preocupação da veterinária e zootecnia. “Na década de 1980 eu já fazia trabalhos em frigoríficos visando eficiência de insensibilização, que posteriormente foi chamado de abate humanitário”. Segundo o pesquisador, “nos grandes frigoríficos há um esforço para colocar em prática o abate humanitário, apesar ainda de ser modesto”. Em 2009, foi lançado o Programa Nacional de Abate Humanitário (Steps), uma parceria do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e da Sociedade Mundial de Bem-Estar Animal, que visa ao treinamento de inspetores para garantir condições de bem-estar animal. “Tanto o produtor, quanto o consumidor começaram a se preocupar com essa questão”, constata Roça.
No Brasil, já existem algumas iniciativas para certificação de produtos, como a Ecocert Brasil, que concede o selo Certified Humane Brasil. “Em outros países já existem esses selos e a tendência é que no Brasil isso também se desenvolva”, afirma Carla Morlento, da UFPR. O Brasil é um dos maiores responsáveis pela produção e criação de animais de consumo no mundo. Em 2000, o MAPA, estabeleceu uma Instrução Normativa, com o objetivo de estabelecer o “Regulamento técnico de métodos de insensibilização para o abate humanitário de animais de açougue”. Para Morlento, da UFPR, há no documento uma clara intenção de proteção dos animais do sofrimento, no entanto, o abate humanitário levanta duas questões principais: a primeira, se é possível causar a morte de outro indivíduo sem causar sofrimento; a segunda, se temos o direito de matar outro animal ou não. “São dois questionamentos importantes que não se anulam. Não é porque a gente tem uma sociedade que aceita o abate animal para consumo que não importa como esse animal seja abatido”, conclui Morlento.
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