MANAUS - A biopirataria é como personagem de alguma lenda amazônica. Todo mundo tem medo, mas ninguém conhece a cara do monstro. Há quem diga que ele não existe, ou que não é tão perigoso assim. Mas o temor que espalha é real e tem causado problemas sérios para pesquisadores que tentam trabalhar com a biodiversidade brasileira. Todos viraram suspeitos de querer enriquecer ilicitamente à custa do patrimônio biológico nacional. O governo endureceu as regras e a pesquisa quase parou.
“Passaram uma rasteira na ciência brasileira”, diz o pesquisador Miguel Trefaut Rodrigues, da Universidade de São Paulo (USP). “No momento de maior avanço da biologia molecular, o Brasil ficou para trás.”
O ponto crítico foi a publicação, em agosto de 2001, da Medida Provisória 2.186, que regulamentou o acesso aos recursos genéticos da biodiversidade nacional. O objetivo era impedir que piratas científico-corporativos pilhassem moléculas da fauna e da flora do País para transformá-las em medicamentos e cosméticos no exterior. Mas o que se criou foi um monstro burocrático que até hoje a comunidade científica luta para exterminar. O governo reconhece os problemas e promete substituir a MP, mas o projeto está parado por causa de discórdias ministeriais.
A dificuldade começa quando se tenta definir biopirataria. Legalmente, o termo biopirataria não existe. O que há são crimes ambientais e crimes contra a propriedade intelectual. Alguns consideram biopirataria o tráfico de animais; outros acham que só o termo se aplica ao uso de genes e moléculas para pesquisa. Nos últimos anos, qualquer atividade suspeita envolvendo plantas e animais virou biopirataria.
Os biopiratas, que sempre agiram à margem da lei, parecem não ter se incomodado com a MP 2.186. Já os cientistas se incomodaram muito. Desde a edição da medida, nenhum pesquisador pode encostar em uma folha ou uma formiga sem autorização por escrito do governo. Trabalhar com a biodiversidade virou atividade suspeita.
“Nos últimos seis anos foi praticamente impossível coletar plantas na Amazônia sem ser chamado de bandido”, diz o cientista britânico Mike Hopkins, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus. Para estrangeiros como ele, a situação é especialmente delicada. A xenofobia ainda é forte na Amazônia. Todo mundo já ouviu alguma história de “gringos” que levaram alguma coisa embora para ganhar dinheiro no exterior.
Cientistas brasileiros relatam o mesmo sentimento de perseguição. “Todo mundo é considerado culpado até que prove o contrário”, diz Carlos Roberto Brandão, do Museu de Zoologia da USP. “Criminalizaram a pesquisa.” Revoltados, muitos cientistas continuaram a trabalhar à revelia da lei, sem esperar pelas autorizações do Ibama ou do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), órgão criado pela MP 2.186. “Se a lei fosse aplicada tal como está escrita, todo mundo nesse departamento seria preso”, confessa George Shepherd, botânico da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
É difícil achar um único caso comprovado de biopirataria. O mais famoso entre os que se aproximam disso é o do veneno da jararaca, que virou remédio contra a hipertensão. A história é verdadeira, mas a interpretação que se faz dela é freqüentemente equivocada. O princípio ativo foi identificado no Brasil nos anos 60, com base no veneno de uma espécie da mata atlântica (Bothrops jararaca), mas não havia laboratório no País capacitado para levar as pesquisas além do ambiente acadêmico. O trabalho foi publicado e as informações (então públicas) foram aproveitadas pelo laboratório Squibb para criar o Captopril, uma droga contra a hipertensão que deu lucros milionários.
“Ninguém roubou nada do Brasil”, diz o médico Sérgio Henrique Ferreira, do Departamento de Farmacologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP, que fez a descoberta. “O que aconteceu não foi biopirataria, foi bioestupidez”, completa, referindo-se à incapacidade do País de capitalizar sobre sua biodiversidade. Se o Squibb não tivesse levado a pesquisa adiante, talvez a fórmula do Captopril estivesse até hoje mofando em uma gaveta de universidade.
Há muitos exemplos semelhantes. O site da ONG Amazonlink identifica várias patentes e marcas que foram depositadas no exterior sobre espécies da Amazônia, como o cupuaçu, a andiroba e a “vacina do sapo” (Phyllomedusa bicolor). Nos rodapés, porém, a organização avisa: “Não sabemos se, ou até que grau, o termo biopirataria se aplica para cada um dos detentores de patentes e marcas aqui mencionados.” A mesma observação se aplica a quase tudo que se fala sobre biopirataria no Brasil. O fato de existir uma patente (nacional ou estrangeira) sobre algum produto da biodiversidade não significa que alguma lei tenha sido violada.
O conceito de biopirataria passou a existir em 1992, com a assinatura da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), da Organização das Nações Unidas. Até então, a biodiversidade era patrimônio da humanidade. A CDB estabeleceu um novo paradigma, dando a cada país soberania sobre suas espécies. Com isso, a biodiversidade ganhou novo valor. Caso semelhante ao do Captopril, hoje, seria inaceitável para o Brasil. O princípio ativo seria patenteado e a venda do medicamento, acompanhada de um contrato de repartição de benefícios com o País.
Ainda que as patentes não sejam criminosas, elas mostram o potencial econômico que existe na biodiversidade. Costuma-se dizer que a cura do câncer está escondida em alguma planta da Amazônia. Talvez. Segundo a especialista Vanderlan Bolzani, do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp), cerca de 60% das drogas anticâncer no mercado são derivadas de algum produto natural. “A natureza produz moléculas fantásticas que servem de inspiração para a indústria farmacêutica”, diz.
Encontrar essas moléculas e transformá-las em um produto, porém, não é nada trivial. Exige muita pesquisa, muita organização e muito investimento de risco. Para cada molécula que chega ao mercado, outras milhares ficam no meio do caminho. “A biodiversidade pode trazer riqueza, isso não é lenda. Mas não é nada que se faça num passe de mágica”, avisa Bolzani. “Tem de beijar muito sapo para achar um príncipe.”
Um levantamento feito com 278 plantas brasileiras pela pesquisadora Adriana Campos Moreira Britto, da Fiocruz, detectou 738 registros de patentes relacionados a 186 espécies. Cerca de 95% são patentes estrangeiras, e quase 90% são de aplicação terapêutica. “Não significa que isso seja biopirataria”, diz a ex-coordenadora de Gestão Tecnológica da Fiocruz e próxima secretária-executiva do CGEN, Maria Celeste Emerick. “O que podemos dizer é que há uma apropriação muito grande do conhecimento sobre a biodiversidade brasileira no exterior. O dinheiro está circulando lá fora, não aqui.”
A Amazônia ainda não rendeu nenhuma droga ao Brasil, apesar de ser usada como farmácia há séculos pelos índios. O primeiro medicamento 100% nacional vem de uma espécie da mata atlântica: o Acheflan, um antiinflamatório baseado no extrato da planta Cordia verbenacea.
Já na área de cosméticos, a Amazônia virou grife. O mercado está repleto de xampus e cremes com a marca da floresta. “Se a valorização da Amazônia for vinculada só à descoberta de drogas, é grande a probabilidade de que seja uma expectativa frustrada”, diz o ex-secretário-executivo do CGEN, Eduardo Vélez. Segundo ele, há um universo de matérias-primas e derivados, como óleos, fibras e suplementos alimentares que não são produtos milionários, mas geram renda da mesma forma. “Não é a cura do câncer, mas é um monte de produtos que, juntos, representam um capital enorme”, diz.
Para os cientistas, a valorização da biodiversidade torna a legislação ainda mais contraditória. A melhor arma contra a biopirataria, dizem, é o conhecimento, é fazer as pesquisas aqui antes que elas sejam feitas lá fora. Cerca de 90% das espécies da Amazônia continuam desconhecidas. A pergunta que os pesquisadores fazem é: se o Brasil nem sabe o que tem na floresta, como vai saber se alguém tirou alguma coisa de lá?
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