Legisladores tentam proibir, cientistas defendem com unhas
e dentes e ambientalistas protestam a plenos pulmões. Afinal,
o conhecimento humano pode evoluir sem testes com animais?
SALVADOR NOGUEIRA
(resumo)Até o início dos anos 1970, o movimento em prol dos animais
carecia de um embasamento mais concreto. Foi em 1975 que
um filósofo australiano resolveu finalmente se perguntar: o que
nos dá o direito de usar animais? Por que podemos sobrepor nossa
vontade à deles?
A resposta que Peter Singer encontrou foi aterradora: para ele,
a premissa de que podemos usar outros animais simplesmente
porque eles não são humanos não tem sustentação lógica ou
mesmo biológica. Em seu livro "Libertação Animal", o filósofo critica
o que ele chama de "especismo" - o preconceito ligado à espécie.
Partindo de um ponto de vista utilitário, ele afirma que as regras morais
deveriam ter por objetivo minimizar o sofrimento. Nesse quesito, muitos
animais estão em pé de igualdade com os seres humanos - eles têm
sistemas nervosos amplamente capazes de sofrer. Portanto, a moralidade
deveria vetar qualquer experimento que provoque dor em animais.
Ganha-ganha: macaco recebe tratamento contra osteoporose.
Poucos experimentos prolongam a vida das cobaias animais
Defesa tardia
Curiosamente, Singer nunca criticou a morte de animais - contanto
que ela fosse indolor, não havia problemas. E, em 2006, chegou a conceder
uma entrevista à rede britânica BBC defendendo cautelosamente os
experimentos com cobaias. "Está claro que pelo menos algumas pesquisas
com animais têm benefícios", afirmou. "Eu certamente não diria que nenhuma
pesquisa animal poderia ser justificada."
Mas, quando ele disse isso, mais de 30 anos depois da publicação de seu livro
seminal, o gênio já estava fora da garrafa. Seus argumentos se tornaram a base
para a defesa dos animais, e os ativistas só fizeram por radicalizar sua postura
ao longo dos anos. Para a maioria deles, abrir exceções não está nos planos.
"A nossa posição sobre a experimentação animal e os testes de produtos
deriva de nossa posição de que toda a exploração animal deveria ser abolida,
que animais não-humanos têm direitos morais que deveriam ser reconhecidos
na lei e nos costumes, e que isso deveria eliminar seu status de propriedade",
diz David Cantor, diretor-executivo da ONG Responsible Policies for Animals
(Políticas Responsáveis para Animais).
A inspiração dos grupos é clara e se baseia fortemente na crítica ao "especismo
". "Pela maior parte da existência humana, muitas pessoas percebiam as relações
humanas/não-humanas como 'nós' versus 'eles'. Mas hoje é fácil perceber que o que
fere a nós também fere animais não-humanos", afirma.
Os defensores dos animais não se contentaram apenas em discursar. Com ações
organizadas, eles conduzem protestos e, num ato de audácia, chegaram até mesmo
a se infiltrar em empresas para registrar e denunciar os maus-tratos aos animais.
Essa foi a tônica do documentário brasileiro "Não Matarás", lançado no ano passado
pelo Instituto Nina Rosa.
"Nosso vídeo é dedicado às pessoas que tiveram a coragem de presenciar essas cenas
durante meses, até anos, para provar ao público o que se passa dentro dos laboratórios",
disse Nina Rosa a Galileu. "Elas foram captadas por técnicos que se empregaram em laboratórios
com o intuito de denunciar as torturas por que passam os animais ali encarcerados.
A fiscalização das condições dos animais é praticamente inexistente."
No documentário, estão presentes cenas impactantes de insensibilidade, como demonstrações
de coelhos sendo usados até perderem a visão com o objetivo de realizar testes de cosméticos.
Outra cena forte mostra um camundongo sendo cortado e examin1ado - tudo parte de uma aula de
imunologia gravada no Brasil.
"Gravar cenas como essas torna-se cada dia mais difícil, pois hoje os laboratórios previnem-se contra
essa possibilidade, pesquisando a vida pregressa de candidatos a empregados e colocando câmeras para
vigiá-los", afirma Rosa.
Mas, segundo ela, não seria com gentilezas que os maus-tratos aos animais seriam minimizados. De novo,
a única alternativa aceitável, para os defensores dos animais, é o fim de todos os testes.
Transgênico: cientista russo manipula coelho clonado. O estudo tenta gerar animais com
leite rico em
proteínas contra alguns tipos de câncer
A grande questão
"Como se pode minimizar o sofrimento de um animal que foi roubado de seu meio e vai viver e morrer
dentro de uma gaiola, sendo utilizado e reutilizado para experimentos dolorosos, em sua maioria sem
anestesia (para não interferir nos resultados), sem contato com seus semelhantes, sem estímulo, sem
espaço, sem ar natural, sem luz natural, sem liberdade, muitas vezes preso em equipamentos de
contenção?", questiona Nina.
Boa pergunta. E a sociedade está tateando em busca do que fazer.
Para o desespero dos cientistas, em novembro de 2007, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro aprovou
uma lei que vetava quaisquer procedimentos que causassem sofrimento a animais em pesquisas. O prefeito
Cesar Maia, numa trapalhada, sancionou - mas logo depois anulou a decisão, ao ver que o texto aprovado
não era o que tinha passado por ele anteriormente, excluindo universidades e centros de pesquisa.
Um episódio similar aconteceu em Florianópolis, um mês depois. A câmara votou, num "acórdão", um projeto
que proibia animais em pesquisa. E trapalhada similar à carioca ocorreu: o prefeito Dário Berger perdeu o
prazo de apreciação da matéria, o que automaticamente promulgou a lei. Os cientistas, desesperados, não
sabiam o que fazer. Berger prometeu correr atrás e "consertar" o engano. Promoveram então uma regulamentação
para a lei que indicava que o controle do que seria aceitável ou não seria feito por comitês de ética (prática já comum
em muitas universidades).
Apesar das poucas conseqüências, a bola bateu na trave duas vezes. E, enquanto uma legislação no âmbito nacional
não for estabelecida (há um projeto de lei tramitando no Congresso, mas o pessoal em Brasília até agora não se sentiu motivado a votar a matéria), as pesquisas estaduais e municipais continuam ameaçadas de extinção.
Mais inteligente foi a União Européia. Depois de longas discussões, decidiu que vetaria o uso de animais em testes de cosméticos. A proibição passará a vigorar em março de 2009, e as empresas européias já estão se adequando. A política - atrelada a um prazo de adaptação - encorajou o desenvolvimento de alternativas para alguns dos testes que hoje são rotineiramente feitos em cobaias vivas.
No caso dos cosméticos, a solução pode ser efetiva. Embora os cientistas digam que será impossível obter segurança
de 100% com testes "in vitro", usando culturas de células em laboratório, é possível verificar muitos dos problemas de antemão. Esforços para verificar o quanto os produtos podem ser danosos à pele, ou identificar os problemas causados por sua interação com raios ultravioleta, já podem ser feitos sem o uso de animais. Mas identificar se uma substância é cancerígena ainda está fora do alcance dos estudos "in vitro".
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