O sapo em: Touradas, budismo e religião
A noite havia chegado, e com ela, a calmaria do mar. O dia fora cansativo e o calor, sufocante. Agora, descansavam. Corto apoiava a nuca com as mãos trançadas atrás da cabeça. Deitado, controlava sem dificuldades o leme do barco com os dedos do pé direito. Podia navegar até dormindo! Vez ou outra abria um olho apenas, checava, lá no alto, a posição do Cruzeiro do Sul, e voltava a cochilar. O veleiro estava em boas mãos! Gonzalo, por seu lado, observava as águas escuras à sua volta, com os dois braços levemente encostados no parapeito da popa. Apenas uma lâmpada iluminava a embarcação: um pequeno ponto de luz amarelada no oceano infinito.
O sapo terminava de fumar mais um cigarro. Gosto amargo na boca. Jogou fora a guimba, que foi rapidamente levada pela correnteza. O pucho se distanciou, boiando junto de algumas garrafas pet e sacos plásticos, que haviam chegado até ali sabe-se lá como. Mas o batráquio continuou sem falar. Afinal de contas, não queria interromper o sono do amigo.
Foi quando viu, ao lado de Maltese, um livreto bastante amassado, com um pequeno rasgo no canto da capa. Era um panfleto apócrifo, de tiragem limitada, publicado pela Editorial Siqueo, no México, na década de setenta, sobre o único toureiro budista de que se tinha notícia. O sapo argentino sabia que o colega maltês estivera havia muito tempo no porto de Veracruz, e que provavelmente teria sido lá que o marujo conseguira aquele texto raríssimo. Gonzalo achou o tema tão exótico e fascinante, que abriu as páginas do livro na mesma hora. E esta é, portanto, a história que ele leu naquela noite solitária…
As narrativas que descrevem a relação entre as touradas e a religião são numerosas e podem ser encontradas nos principais tratados de tauromaquia, que relatam especialmente a ligação histórica entre a fiesta brava e o catolicismo ao longo dos tempos. São muitos os exemplos. Quem quisesse ingressar em uma congregação mariana, no século XV, era obrigado a cumprir com seu oitavo estatuto, que proibia receber em suas fileiras qualquer sacerdote que não fosse também um cavaleiro de touradas. Em Tudela, não se podia tourear sem que antes um frade capuchinho fizesse um pedido para que os touros fossem “bons”, ou seja, bravos. Quando as corridas eram celebradas em algum cabido da catedral de León, os padres eram obrigados a benzer osmatadores. Era comum presenciar em Granada, no século XIX, a imagem da Virgem das Angústias presidindo as faenas, assim como os toureiros pedindo permissão a ela para lutar com os animais na arena. Naquela época quase nenhum lidiador entrava na arena sem levar em volta do pescoço um escapulário com a imagem da Virgem de Carmem, a padroeira dos vagabundos e pícaros espanhóis. Ao lado das praças de touros, encontrava-se, sempre de portas abertas, uma capela, em geral de são José, a quem os matadores pediam proteção.
Pode-se ir mais longe. Casamentos reais e populares eram realizados durante ascorridas, conhecidos como “touro nupcial”. Este foi o caso do casamento de Felipe II e Ana da Áustria, assim como também das bodas do imperador Alfonso VII em Saldaña, em 1124 ou de sua filha com García Ramírez de Navarra, em León, em 1144. Muitas vezes, quando os estudantes se doutoravam ou quando se ganhava uma guerra, ocorriam faenas. As touradas também se celebravam quando se cortejava alguma mulher, como fazia Henrique IV; em missas; ou durante um ato de canonização ou beatificação. Na santificação de santa Teresa de Ávila, em 1614, por exemplo, foram sacrificados mais de duzentos touros em trintas corridas. Os espetáculos taurinos também ocorreram quando foram canonizados santo Isidro, são Francisco Xavier, são Luiz Gonzaga, santo Inácio de Loyola e são João Sahagún. No século XVII era comum matar centenas de reses enquanto se evocavam mártires da Igreja. A carne dos bovinos era, então, guardada como relíquia e como remédio contra a febre. Nessa mesma época, era costume entre a nobreza também realizar touradas para celebrar nascimentos no seio de famílias influentes. Por isso, em 1658, para comemorar o nascimento de Felipe Próspero, foram sacrificados 24 touros.
A Igreja católica possivelmente se apropriou das touradas como forma de controlar o paganismo e difundir os ensinamentos bíblicos na península ibérica, da mesma forma que os padres se “apropriaram” de santuários celtas na Galícia ou de mesquitas árabes em Córdoba e erigiram, sobre aquelas construções, seus próprios templos cristãos. A influência muçulmana na região, como se sabe, sempre foi grande. Muitas pinturas com cenas de touros, nas paredes de algumas igrejas de Castela, por exemplo, em realidade se referiam à liberação dos tributos das “cem donzelas”, que devia ser pago pelos árabes da região e que foi suprimido depois que um rebanho de touros botou os cobradores de impostos para correr. Era comum que se celebrassem as faenas nas cerimônias de circuncisão dos príncipes mouros, no século XIV, ou quando as damas locais davam à luz. Por isso, não é de estranhar que a fé cristã tenha utilizado muito da simbologia e das tradições taurinas islâmicas naquela região.
Na própria praça de são Pedro, em Roma, no dia 4 de fevereiro de 1492, em comemoração pela retomada de Granada dos muçulmanos, se realizaramcorridas, promovidas pelo cardeal Rodrigo Borgia, que pouco tempo depois se tornaria o papa Alexandre VI, e que contou com a presença de seu filho César, que chegou a matar dois touros. Nessa ocasião, o dignitário também organizou massacres de idosos, judeus e prostitutas em praça pública. Tudo como parte da festa. A Igreja sempre foi mais propensa a matar índios, negros, “bruxas” e judeus do que touros…
Mas também havia aqueles que combatiam a fiesta brava. Em 1567, o papa Pio V, na bula De salutis gregis dominici, condenava as touradas, punindo com a excomunhão os “contraventores” da sua lei. Exigiu que o governador de Roma impusesse a pena capital àqueles que participassem dos combates, que haviam se estendido no século XVI à Itália. Apesar disso, nem mesmo um católico fervoroso como Felipe II da Espanha reconheceu a bula, já que havia os interesses da nobreza e a pressão popular envolvidos no assunto. O próprio clero participava sem problemas da festa. Assim, quando o bispo de Salamanca foi nomeado delegado papal para perseguir todos aqueles que não seguiam os ditados do Vaticano, não teve sucesso. O papa Gregório XIII relaxou a imposição a pedido de Felipe II, em sua Exponis Nobis, mas os problemas voltaram com o papa Sixto V, o que obrigou o rei a enviar um recurso através do frei Luis de León, o qual afirmava que a proibição não surtiria efeito, considerando que as touradas faziam parte da vida e das tradições do povo de seu país. Finalmente, em 1596, uma nova bula, desta vez do papa Clemente VIII, acabava com quaisquer excomunhões a quem estivesse envolvido na festa taurina, com exceção dos clérigos. Mesmo assim, os religiosos continuaram desobedecendo as ordens do Sumo Pontífice. Todos os padres que gostavam das touradas, para fugir das punições da Igreja, tiravam seus trajes de religiosos e se disfarçavam para poder lutar contra as feras. Até mesmo o cardeal Barberini, em 1625, se fantasiou e participou de touradas. Um dos mais ferrenhos opositores das faenas foi são Tomás de Villanueva, que considerava as touradas bestiais e diabólicas. Mas no dia de sua canonização, em 1658, paradoxalmente ocorreram várias festas com touros para celebrar o acontecimento.
O mais interessante é que, mesmo havendo significativos setores da Igreja contra as corridas, muitas ganaderias foram propriedade de religiosos, como as dos cartuxos e dos dominicanos de Jerez de la Frontera. Os padres da região, no final do século XVII, recebiam os bois não castrados como parte do dízimo e gradualmente começaram a escolher os melhores espécimes para a criação de touros de lidia. Mais tarde, os dominicanos de são Domingo de Jerez e são Jacinto de Sevilha, inspirados nos padres da Companhia de Jesus de Sevilha, decidiram promover touradas entre os religiosos. Já no século XVIII, o Convento de santo Agostinho era um dos principais criadores destes animais na Espanha, assim como o sacerdote de Rota, Marcelino Bernardo Quiróz e anos depois o padre Francisco Tejero. No século XIX, os mais importantes criadouros encontravam-se nas mãos do clero, como os de Diego Zapata, Manuel Rodríguez e Trujillo Agustín Solís, que contava com 352 reses bravas.
Entre as comemorações católicas relacionadas aos touros na Espanha, é possível destacar a Festa de são Marcos. Nessas celebrações, que se iniciaram em Baeza, Andaluzia, os camponeses originalmente pediam ao santo padroeiro que expulsasse os bandidos e os mouros da região. Mais tarde, a população solicitava proteção durante a safra e a colheita de trigo. A maioria das feiras de gado em todo o país ainda ocorre em dias santos, como o da Virgem da Merced, em Barcelona; santa Madalena, em Castellón; são Pedro e são Paulo, em Burgos; são Fermín, em Pamplona; santo Isidro, em Madri; assim como o Corpus Christi em Toledo e Granada. Em Arnedo, a festa de Nossa Senhora de Hontanar, que se celebra no mesmo dia da Festa de são Marcos, começa com um ritual religioso e termina com touradas. O fato é que esta festividade já havia sido descrita pelo frei Francisco de Coria, em sua Descripción general de Extremadura; pelo frei Juan de la Trinidad, na Crónica de la provincia de San Gabriel; e pelo frei Juan de San Antonio, em seu San Marcos, defendido en el milagro que Dios obra todos los años en amansar un toro por sus méritos, publicado no final do século XVII.
A tradição supostamente começou a partir da lenda que dizia que Jesus, ao descobrir que são Marcos havia traído a própria esposa, decidiu punir o apóstolo, transformando sua mulher em touro, para que o marido pudesse ver sempre seus chifres e se recordar que nunca deveria ter sido infiel. O culto a são Marcos tornou-se ao longo do tempo extremamente popular em toda a Espanha. De acordo com a tradição, na véspera das celebrações, os mayordomos de uma congregação com o nome do santo se dirigem a um campo aberto onde se encontra o gado, escolhem um touro entre vários e o chamam pelo nome do discípulo de Cristo. Aparentemente o animal, naturalmente agressivo, misteriosamente se desgarra dos outros e acompanha os religiosos calmamente até a igreja, onde assiste a missa e a procissão, até que, ao final das festividades, torna-se novamente feroz e sai correndo de volta ao pasto. Enquanto está entre as pessoas, contudo, permite ser tocado e acariciado pelos fiéis. Se por acaso o touro não seguisse o padre que o chamasse pelo nome do apóstolo e ainda continuasse agressivo, isso seria sinal de que o religioso havia pecado…
Muitos milagres também foram atribuídos aos touros. Esse foi o caso quando Ordonho I condenou o bispo Ataulfo, acusado de sodomia, a ser estraçalhado por uma destas feras. No momento em que o sacerdote foi jogado na arena, em trajes de religioso, e foi atacado agressivamente pelo animal, segurou seus chifres e os arrancou de sua cabeça: ficou com os cornos na mão. Algo similar ocorreu com são Pedro Regalado, em Valladolid, e com são Juan de Sahagún, em Salamanca, em ocasiões distintas. Esses homens aparentemente foram salvos enquanto enfrentavam touros bravos e servem como exemplo da relação entre a tauromaquia e a religião naquele país.
No México não foi diferente. Como se sabe, os touros chegaram ao continente americano no começo do século XVI, trazidos pelos espanhóis. As primeirascorridas informais ocorreram no dia 24 de junho de 1526, no Convento de são Francisco, promovidas pelo próprio Hernán Cortés, que naquela época também começou a criar gado na região. As primeiras festas oficiais com touros foram realizadas a partir do dia 31 de julho de 1528, para homenagear vários santos católicos, como são João, são Tiago e Nossa Senhora de Agosto. Em 1529, foi decidido que todos os anos, no dia de são Hipólito – data em que a principal cidade asteca foi conquistada –, sete touros participariam das corridas, dos quais dois seriam sacrificados e doados, “por amor a Deus”, aos mosteiros e hospitais locais.
Quando foi confirmado pelo rei Felipe III como vice-rei das Índias Ocidentais, em 31 de março de 1611, o arcebispo Pedro García Guerra decretou que a partir de então, em todas as sextas-feiras daquele ano, deveriam ocorrer corridas na praça de touros que ele mesmo havia mandado construir no Palácio Arcebispal, para recordar sua nomeação ao cargo. Ao se iniciar a primeira tourada, a terra subitamente começou a tremer. Muitos acharam que o terremoto fosse um castigo por se realizarem festas no dia da Paixão de Cristo. Uma semana mais tarde, tentaram novamente dar continuidade às celebrações e mais uma vez um forte sismo abalou a cidade. Depois disso, o governante decidiu interromper as festividades.
Como na Espanha, os touros corriam em datas religiosas. No dia 12 de maio de 1680, na consagração da igreja de Guadalupe, em Querétaro, vários destes animais foram sacrificados, enquanto em junho de 1734, outros foram enfrentados em público na recepção do arcebispo e vice-rei Juan Antonio de Vizarrón y Eguiarreta.
No século XIX, as touradas se tornam cada vez mais uma expressão da identidade nacional mexicana. Até mesmo os “pais” da independência tinham vínculos com a tauromaquia. O padre Miguel Hidalgo era dono de várias fazendas que criavam gado e touros bravos; já Morelos gostava de laçar reses; e Ignácio Allende, militar e charro, durante festas religiosas também lidiavatouros.
Naquele período as corridas mexicanas já possuíam características próprias, muitas das quais adaptações de modalidades espanholas. As festas incluíam os “loucos”, personagens caricaturais que provocavam os touros; cegos, que tinham de laçar porcos soltos no picadeiro; cachorros perseguindo coelhos jogados na arena ou caçando veados; balões aerostáticos; fogos de artifício; e até mesmo pau de sebo, para o entusiasmo do público que frequentava o espetáculo. Com o tempo, se desenvolveram outras atrações exóticas, como saltar com uma vara comprida sobre um touro; colocar bandarilhas no animal, equilibrando-se sobre um barril; e fincar flores de papel no dorso do bicho com as mãos, para depois retirá-las, quase como um contorcionista, apenas com os pés.
Como na Espanha, sempre havia quem não gostasse da fiesta brava. Em 28 de novembro de 1867, as touradas foram banidas por vinte anos na capital e somente ocorreram no interior do país. Depois da liberação, contudo, as festas não duraram muito, já que em 1890 uma nova proibição na Cidade do México impediu que a população local pudesse apreciar a arte por quase um lustro. Quando as corridas voltaram a ser celebradas em 1895 já haviam perdido popularidade. Ou seja, no final do século XIX poucos se interessavam pela tauromaquia.
Somente no começo do século XX é que as touradas trariam um enorme público para as praças novamente. Em grande parte, os responsáveis por isso foram três grandes toureiros, Arcadio Ramírez, Juan Silveti e Rodolfo Gaona, que com seu estilo e coragem levaram as faenas a ter, ao longo dos anos, o prestígio e respeito de toureiros de nível internacional. É importante recordar especialmente a Rodolfo Gaona, “o índio grande”, considerado possivelmente como o maior espada de sua época. Mas estes não foram os únicos toureiros de importância que lidiaram naquele país. Entre os mais interessantes estão o espanhol Luis Mazzantini y Eguía, “o rei do volapié”, que foi também ator, cantor de ópera e político; o sevilhano Antonio Montes, surdo desde a infância, coroinha e carpinteiro, que depois se tornou um grande matador; e Vicente Segura, o “toureiro milionário”, filho de uma família rica, que estudou nas melhores escolas e universidades do México, Bélgica e Nova Jersey (Estados Unidos) e que mais tarde abandonou o Colégio Militar para atuar nas arenas. Durante a revolução mexicana, deixou a fiesta brava e tornou-se comandante da “Brigada Hidalgo”, lutando ao lado do general Lucio Blanco. Chegou a coronel.
E há outros exemplos. Luis Freg, “Don Valor”, indivíduo de coragem impressionante, que mesmo tendo recebido ao longo dos anos em torno de oitenta cornadas, foi perder a vida afogado, quando o navio em que se encontrava afundou; ou Pepe Ortiz, “El Orfebre Tapatío”, ator de cinema, cantor e roteirista, que atuou em longas como El tigre de Yautepec (1933), Seda, sangre y sol (1941) e Maravillas del toreo (1942), considerado um artista das arenas; e Alfonso Ramírez, “El Calesero”, um poeta do redondel, que se destacou ao longo de quarenta anos de vida profissional.
Como todos estes, Pablo Almeyra foi também um dos grandes toureiros que se apresentaram no México na primeira metade do século XX, mesmo que não seja conhecido pelo grande público da atualidade. Este interessante matador, que combateu nas tropas de Pancho Villa por dois anos na revolução mexicana, foi talvez aquele que combinou de maneira mais exótica a tauromaquia com a religião. Mesmo assim, os aficionados da nova geração ainda não estão cientes de sua trajetória nas arenas do país. Os poucos registros sobre Almeyra podem ser encontrados em algumas edições do El Universal Taurino, dos anos vinte, época de seu auge como matador, e também o período em que abandonou afiesta brava por completo. Como se sabe, alguns consideram as touradas um esporte; outros, uma arte; e há ainda aqueles que a descrevem principalmente como uma experiência religiosa. Era assim que Pablo Almeyra interpretava asfaenas. Mas este excelente diestro não ficou conhecido necessariamente por inovar na técnica de lidiar touros, mas por ser talvez o primeiro e único toureiro budista que se tem notícia.
Nascido no final do século XIX, Almeyra passou a infância na pobreza. Não chegou a frequentar a escola, mas aprendeu a ler, ensinado por um vizinho da família, um velho professor aposentado que tomara afeição pelo menino.
Sua inteligência pôde ser percebida desde cedo, assim como sua aguda percepção de tudo a sua volta. Aprendia rapidamente qualquer ofício após observar atentamente do que se tratava. Quando ainda era pequeno, podia ser visto entregando jornais pelas ruas da capital. Foi olhando como os outros agiam que começou a trabalhar, na adolescência, como padeiro. De ajudante, em poucos meses tornou-se o chefe da cozinha de um restaurante de Coyoacán, o que significou um salário maior do que havia recebido até aquele momento.
Durante a revolução, entusiasmado com os combates no campo militar e ansioso por participar, largou tudo e se uniu às tropas de Pancho Villa. A maior parte do tempo ficou na retaguarda, preparando refeições para os soldados. Teria participado de alguns combates com a Divisão do Norte. Não há, contudo, nenhum documento ou evidência que possa garantir que isso tenha ocorrido, com exceção de relatos duvidosos do próprio Almeyra, em entrevista para a imprensa mexicana, anos mais tarde, quando já era um toureiro relativamente conhecido. De qualquer forma, ao terminar os anos mais sangrentos da revolução, retornou à capital, onde reencontrou a família e voltou a trabalhar. Mas foi nesse momento que sua vida iria mudar. Nesta época começaria a lidiartouros e em seguida se converteria ao budismo.
Quando criança, nunca demonstrara interesse especial pelas corridas. Com a proibição das touradas entre 1916 e 1920, não chegou a ter acesso ao espetáculo taurino. Preocupado por um lado com os problemas resultantes da guerra que terminara recentemente, e por outro, com a difícil situação econômica de sua família, não tinha tempo para diversão nem para conhecer a tauromaquia. Mas ao assistir uma lidia de touros, no final de 1922, se impressionou tanto com o espetáculo que se tornou um assíduo espectador. Podia ser visto todas as semanas da temporada assistindo seus novos ídolos enfrentando as feras. Mesmo sendo adulto e nunca tendo toureado anteriormente, decidiu começar a treinar para se tornar um matador. Seu pai, já idoso, achou a ideia um absurdo e tentou dissuadi-lo. Alguns amigos também fizeram o possível para que desistisse. Mas ele estava determinado. Queria ser um diestro!
Sua capacidade de observação continuava tão aguda quanto antes e em poucos meses, podia ser considerado um dos mais destacados “novilheiros” do país. Ao se doutorar, na Cidade do México, foi aclamado pelo público e exaltado pela imprensa especializada. Os anos como padeiro, cozinheiro e soldado haviam passado. Almeyra agora só se preocupava com as corridas. Em breve, contudo, ele teria outra grande mudança em sua vida.
A conversão ao budismo ocorreu naquela mesma época. Em meados de 1925, conheceu Toshiro Okinawa, um velho japonês, dono de uma loja de tecidos. Foi Okinawa que pela primeira vez apresentou o budismo ao toureiro mexicano.
A história deste vendedor nipônico ainda é pouco conhecida e repleta de controvérsias. Não há registros de sua chegada ao México nem dos motivos que o teriam levado ao continente americano. Novamente é necessário aqui recorrer ao testemunho de Almeyra, em uma de suas poucas entrevistas para El Universal Taurino. Aparentemente Okinawa chegara ao México antes da revolução e começara desde então o negócio de tecidos. Deixara a família no Japão e por isso, vivia completamente só em seu novo país. Como não tinha interesse por política, não teve qualquer participação nos eventos revolucionários. Sua loja permaneceu intacta e ele pôde continuar seu trabalho sem interrupções, apesar de sua clientela diminuir consideravelmente durante alguns anos. Dizem que chegou a fornecer tecidos para membros do governo e até mesmo para alguns líderes militares de diferentes facções da guerra.
Depois da revolução, a quantidade de clientes aumentou, mas não o suficiente para garantir grandes lucros. Após anos no México, continuava basicamente na mesma situação de antes.
Certo dia, Pablo Almeyra entrou na loja de Okinawa para consultar o velho sobre o melhor tecido para um paletó que estava querendo encomendar a um amigo alfaiate. Percebeu, no mesmo momento, uma enorme imagem dourada de Buda no fundo do local e perguntou do que se tratava. Okinawa explicou rapidamente alguns detalhes da vida de Siddharta e depois foi buscar o tecido pedido por Almeyra. Mas a imagem plácida e tranquila daquele homem gordo e sorridente, de pernas cruzadas e braços encostados nos joelhos, a própria versão japonesa do iluminado príncipe indiano, continuou a intrigar o matador, que depois de acariciar o pano indagou novamente sobre a estátua e a religião do velho a sua frente.
Esta havia sido a primeira vez que um mexicano demonstrara tanto interesse em suas crenças. É bem verdade que outros clientes já haviam percebido a estátua no fundo da loja e perguntado do que se tratava. Muitas pessoas pensavam que aquilo era apenas um enfeite qualquer. Outras, que era um objeto pagão: eram devotos da Virgem de Guadalupe, tinham fé em Jesus Cristo e rezavam para os santos católicos. Aquela imagem oriental, na opinião de muita gente, não estava de acordo com os preceitos cristãos. Mas Pablo Almeyra tinha uma ideia distinta. Aquele Buda, de alguma forma, parecia simbolizar paz interior e espiritualidade. Ficou admirando o objeto por vários minutos, fascinado com a beleza do trabalho do escultor e com o seu misterioso significado.
O velho japonês percebeu o interesse do diestro, que já conhecia de nome e fama, e o convidou a ir no próximo dia à sua loja para prosear com mais calma sobre o budismo. Almeyra aceitou.
A conversa foi longa e aparentemente mudou a vida daquele toureiro. Okinawa chamou Almeyra para tomar um chá em sua casa, após fechar a loja, e permaneceu horas com o matador. Falou calmamente sobre a trajetória de Gautama, da infância até a velhice, explicou sua filosofia de vida e suas ideias. E Almeyra ouviu tudo, impressionado. Nunca tivera interesse em nenhuma religião. Quando criança, ia à missa com os pais, devotos de São Francisco, mas nunca se envolvera com a fé cristã como o resto de sua família. Sempre tivera um distanciamento com a Igreja, assim como não lhe agradavam os padres e sacerdotes em geral. Como muitos mexicanos, sentia certo anticlericalismo e desprezo pela hierarquia católica, apesar de demonstrar em diversas ocasiões respeito pelos santos. Algumas vezes fazia o sinal da cruz ao entrar na arena, talvez por temor ao touro, talvez por costume de família. Mas aquilo era algo quase mecânico. Poucas vezes realmente pedira proteção divina antes de entrar numa praça para lidiar um touro. Tinha excessiva confiança em si mesmo e não acreditava que pudesse ser ajudado por nenhum santo. Havia lutado com Villa e visto balas voando sobre sua cabeça durante a revolução: se podia enfrentar homens armados, podia também lidar touros. E tinha a convicção que mataria as feras. Mas agora, parecia que algo estava mudando sua maneira de ver o mundo. Okinawa começou a lhe emprestar vários livros, que Almeyra lia vorazmente e poucos dias depois devolvia, para então pedir mais material sobre o assunto.
Quase todos os dias visitava Okinawa, com quem ficava horas conversando e ouvindo conselhos, depois que este fechava as portas da loja. Já o considerava seu novo mestre.
Em poucos meses Almeyra raspou a cabeça e se acostumou a tomar chá todos os dias, um hábito de Okinawa que começava a copiar. Os amigos acharam estranho, especialmente porque o toureiro sempre fora adepto ao café forte de Oaxaca, que antes tomava cotidianamente. O espada mexicano certamente parecia outra pessoa. E todos percebiam a transformação.
A temporada ainda não havia iniciado e Almeyra dava a impressão de estar mais interessado em suas meditações do que nas corridas. Alguns parentes mostravam-se claramente preocupados com suas estranhas atitudes, que destoavam do resto da população. Foi nessa época que o lidador começou a ter dúvidas de seu ofício de matador. Mas o amor às touradas ainda era forte. Queria conciliar as fainas com sua nova espiritualidade, procurando justificativas que permitissem ao mesmo tempo acabar com a vida de um animal na arena sem contradizer sua “religião”. Ele sabia da importância das cinco regras proferidas por Gautama, inclusive a de ser compassivo e respeitar todo o tipo de vida no planeta. Por isso, perguntava por noites inteiras a Okinawa o que devia fazer: o velho japonês apenas retrucava que esta resposta ele teria de encontrar por si só. Seria apenas questão de tempo.
Almeyra, considerado pela crítica especializada como uma das maiores promessas do mundo taurino, um dos lidadores mais ágeis e habilidosos do país, comparado aos melhores matadores espanhóis, agora era alvo de piadas da população. Ninguém acreditava que ele poderia triunfar nas arenas mexicanas na temporada que se aproximava. Mas todos queriam assistir a sua estreia. Seu desempenho seria analisado por aficionados, leigos e jornalistas da mesma maneira. Alguns chegavam a dizer que tudo não passava de uma estratégia demarketing, uma forma de se autopromover, de ganhar adeptos e garantir novos contratos. Mesmo assim, poucos levavam a sério sua conversão ao budismo. Era comum ouvir comentários sobre seus hábitos pessoais e sua rotina diária. Apesar de cada vez mais se tornar um recluso e manter sua vida privada longe dos olhos do público, crescia a lenda sobre as excentricidades de Almeyra e sua relação com o velho japonês. Mas não era a grande massa que Almeyra queria iluminar. Como o Arahat, não se iludia com a ideia de que o populacho fosse compreender sua escolha. Seguindo os ensinamentos milenares do Tathagata,do Saccanama, sabia que seu caminho era solitário e a descoberta do conhecimento verdadeiro deveria ser feita buscando a verdade numa viagem interior. A conquista da salvação ocorreria sem a intervenção de uma divindade. Mas também, como o Baghavat, tinha ciência de que, mesmo vivendo em condição de pobreza e longe das multidões por algum tempo, era tambémimportante estar perto das pessoas, inclusive dos ricos, que poderiam se interessar em financiar um mosteiro que planejava construir no futuro. E, como se sabe, a fiesta brava no México é um evento extremamente apreciado principalmente pelas classes mais abastadas do país.
Certamente, a maior parte dos boatos era mentira. Os cronistas taurinos tinham o prazer em criar e destruir mitos das arenas, e muito do que foi dito sobre o toureiro budista foi difundido com o objetivo explícito de acabar com sua imagem. De qualquer forma, Almeyra aparentemente não se importava com isso. Cada vez mais centrado em si mesmo, passava várias horas por dia meditando em sua casa ou em companhia de seu mestre Okinawa. Aquele que antes supostamente havia sido um feroz combatente na revolução agora parecia calmo, relaxado e extremamente concentrado. Sabia que a nova temporada taurina estava próxima, mas preferia ficar em seu costumeiro estado de meditação, de pernas cruzadas no chão, com os olhos fechados e com os indicadores e os polegares se tocando levemente, enquanto emitia um som gutural que saía da garganta sem que precisasse abrir a boca. Não parecia nem de longe com o treinamento normal de um toureiro. Mas achava que era como deveria se preparar.
Foi nessa época que começou a desenvolver sua própria interpretação das touradas. Almeyra, em realidade, sentia a necessidade de explicar os motivos pelos quais participava das corridas, assim como queria expor sua forma de se relacionar com sua religiosidade. Sua teoria foi divulgada em uma de suas raras entrevistas, antes de sua estreia na nova temporada.
De acordo com ele, seria importante um enfoque direto entre a experiência vivida e a realidade objetiva, sem qualquer mediação, fosse de palavras ou ideias. Para se atingir um estado transcendental, uma consciência limpa, que permitisse ao indivíduo perceber os mistérios e as belezas de cada momento preciso, seria fundamental que a mente estivesse completamente aberta, sem reflexões de qualquer tipo. Só assim a pessoa poderia vivenciar e compreender simultaneamente a relação entre o mundo real e espiritual. Seria nesse estado de ânimo que o espada deveria lidar. Por isso, Almeyra afirmou que conhecia osdhyana budistas (os oito graus de meditação), o exercício dos “Quatro Ilimitados” da seita Mahayana e até mesmo alguns poderes ocultos, tomados emprestados do lamaísmo. Todas essas técnicas permitiriam transcender as impressões sensoriais; superar o mundo concreto, expandindo os limites da consciência, pela amizade, compaixão e sentimento de igualdade em relação aos outros; e desenvolver todas suas capacidades psíquicas.
A técnica do Mahamuda também não lhe passou despercebida. Almeyra incorporou o budismo tântrico ao seu processo de meditação, se esforçando, como os iogues, em manter as pernas flexivelmente cruzadas, jogando em seguida uma corda por trás das costas para depois suspender seus joelhos, com o intuito de impedir que seu torso se envergasse; e então, a língua curvada para trás, tocando o palato e os olhos mirando fixamente a ponta do próprio nariz. Almejava, em algum momento no futuro, conseguir a independência dos dois pulmões, assim como poder controlar as “679 fibras lisas” de seus músculos.
O processo para alcançar os mundos do karma (desejos), do Rupa (formas) eArupa (imaterial), se daria pela concentração de um ponto físico qualquer, para, a partir daí, ser abandonado ao movimento e seguir por conta própria, usando a imaginação para desvencilhar o espírito de seu conteúdo. Seria aí, então, que a verdade surgiria. E se poderia sentir o universo. O matador, portanto, teria de estar em estado de transe completo, sem nenhuma outra preocupação que não fosse o momento da tourada. Nessa meditação, ele se moveria leve e instintivamente e investiria em seguida no animal, deixando de lado o público, o barulho, o dinheiro e a glória. O sangue correria em suas veias, a adrenalina cada vez em níveis mais altos, cada poro respirando, cada músculo sendo sentido, cada movimento realizado por instinto. Então haveria a conexão necessária entre o matador e o touro a sua frente. Os dois seriam parte de um mesmo processo, de uma mesma aventura no planeta. Isso estaria de acordo com a doutrina difundida pelo Anoma, ou seja, “considerar a igualdade de toda a criação”. O homem e o touro, durante a fiesta brava, seriam um só.
O “conhecimento” estaria ligado a uma prática mística, e a arena seria o lugar ideal para que, num estado quase hipnótico, se pudesse, subitamente, descobrir a estrutura dos mundos invisíveis, e consequentemente, dominar a natureza. Isso seria equivalente a uma libertação e ao mesmo tempo a capacidade de exercer a magia sobre os outros, neste caso, o público.
Esses preceitos de certa forma aliviavam Almeyra moralmente, já que ele sabia que um dos maiores “pecados” no budismo era incontestavelmente o sacrifício de animais. O toureiro mexicano estava ciente das dificuldades em se interpretar livremente a doutrina de Buda, e tentava se adaptar da melhor maneira possível às suas regras práticas.
Somente seguindo essas normas da vida o indivíduo conseguiria aliviar seukarma. Ou seja, o toureiro que abraçasse o budismo poderia estender seus princípios para o meio social. Se a moral budista é estritamente pessoal e justa, decorrente do nível espiritual de cada um, ela também, ao mesmo tempo, influenciaria o karma coletivo. Almeyra parecia estar imbuído da percepção do sacríficio bramânico, já que de alguma forma acreditava que o próprio sacrificador iria ao Paraíso, retornando às origens e tornando-se parte do divino. Isso se estenderia ao público na praça de touros, fazendo com que o espetáculo fosse uma impressionante experiência mística coletiva. Só com sacrifícios deste tipo é que os espadas e o público poderiam lapidar a alma e desfrutar o oceano perene de felicidade. Para tentar ganhar adeptos católicos no México para o budismo, Almeyra gostava de recordar que a Igreja chegou a canonizar Siddharta Gautama com o nome de são Josafá, mostrando como até os mais altos dignitários de Roma o respeitavam.
A iluminação só poderia ser alcançada se o espada estivesse num estado profundo de consciência, um transe ativo que lhe permitisse praticar todas as suas intuições. Só assim pode-se explicar que alguns toureiros idosos continuaram a lidiar como na juventude. Mesmo com o corpo envelhecido, conseguiam se superar porque tinham uma espiritualidade e capacidade de concentração especiais. Isso tudo ocorreria dentro do redondel, na praça de touros, que representaria a própria Dharmaçakra, a Roda da Vida.
Cada lidador que seguiu os ensinamentos de Almeyra aprendia, portanto, como controlar sua respiração, dominar o medo e meditar profundamente enquanto toureavam. Muitas vezes o público não percebia isso, já que o toureiro lutava de olhos abertos, gritando e matando o touro aparentemente sem piedade. Em realidade, estes homens entravam no picadeiro em estado de transe profundo e se exibiam sem perceber ninguém por perto. Apenas sentiam o que estava ocorrendo e reagiam por instinto. Quando a faina terminava, acordavam do torpor e sentiam-se aliviados. Era uma verdadeira experiência religiosa!
Para o zen-budismo é necessário liberar energia acumulada. O centro desta energia estaria supostamente localizado no ventre, perto do umbigo, num ponto conhecido como hara. Seria nesse ponto que se concentrariam todas as forças do homem, assim como nas costas, especificamente entre a terceira e quarta vértebras, região onde o corpo e a mente se fundiriam e se conectariam com a terra. Em teoria, com uma técnica correta de respiração, qualquer ação humana ganharia muito mais força e precisão. O abdômen, assim, seria tão importante quanto a cabeça ou o coração. As posturas do corpo, portanto, refletiriam o estado de consciência no zen.
De acordo com Almeyra, como para muitos diestros, ao se tourear, seria fundamental colocar a barriga adiante, com o intuito de provocar o touro. Ao mostrar seu hara para o oponente, o matador estaria ao mesmo tempo expondo sua essência humana e ganhando certa invulnerabilidade, pois concentraria toda sua força vital naquele ponto diante de um perigo iminente. Todos os sentimentos convergiriam para o abdômen naquela hora.
Quando o espada começasse a caminhar lentamente em direção ao animal, apoiado apenas na ponta dos dedões, na prática estaria realizando o kin-hin, ou meditação a pé. Desta forma conseguiria manter o queixo e a nuca eretos, permitindo o correto posicionamento da coluna vertebral, postura fundamental para estar num estado completamente alerta para a luta.
O grito do espada e o mugido dos touros também fariam parte da meditação, pois não apenas remeteriam aos velhos templos budistas japoneses, como ajudariam a aguçar o estado de alerta do matador. Em seguida, haveria um grande silêncio, quando o diestro e o animal olhariam um ao outro, como se pudessem se comunicar. Esse seria o momento do sacrifício, quando os dois pareceriam compreender o que estaria para ocorrer. O respeito seria mútuo. Cada qual saberia o seu papel. O toureiro então enfiaria a espada, como extensão de seu braço, no dorso do bovino. E, como já foi dito anteriormente, seria como se ele e o touro então se tornassem um só. Neste momento, supostamente, ambos transcenderiam aquele evento trágico. Aí não haveria lugar para personalismos nem egoísmo. Apenas um ato de desapego pessoal, uma forma de se desinvestir de sua própria identidade no tempo e metamorfosear-se em uma entidade única dentro da natureza.
É claro que Almeyra sabia que a doutrina não era um dogma, mas um caminho que o levaria para o conhecimento. Era uma atitude pessoal que exigiria uma estrita disciplina para chegar à salvação. Mas não seria preciso conhecer a fundo nenhuma grande obra filosófica para se atingir a iluminação, mesmo sabendo que o espada budista tenha lido diversas obras emprestadas de seu mestre, inclusive os sete volumes do Abhi dharma, entre outras. Em realidade, o mais importante seria meditar, se concentrar e se envolver inteiramente na prática de tourear. Os homens não poderiam estar condicionados pelo passado, mas sim, pela percepção atual. E deveriam sempre se recordar que a sabedoria consistiria em renunciar às falsas dependências do mundo exterior. Ou seja, um desapego da matéria, sensação e sentimento.
Durante vários meses, Almeyra se preparou para a nova temporada apenas com técnicas de meditação. Alguns boatos diziam que ele inclusive havia sido visto mendigando pelas ruas da capital, com uma tigela para esmolas na mão. Seu empresário, José Mallorquín, entretanto, aproveitou o interesse do público pela estranha conversão do toureiro e divulgou como pôde sua futura apresentação. Acreditava que os cartazes colados nas ruas da cidade e a intensa propaganda que fazia na imprensa especializada criariam um enorme entusiasmo entre a população, ávida por ver um grande espetáculo taurino. Até que chegou o momento.
Entrou na arena junto com dois outros matadores, assim como vários assistentes, picadores e bandarilheiros, enquanto escutava o som da banda que anunciava o início das festividades. Sua aparência certamente impressionou o público que lotava aquela arena. Completamente calvo, alguns quilos mais magro, trazia a imagem cintilante do Buda bordada nas costas. Os diestrossaudaram os aficionados, o presidente e as autoridades presentes e se retiraram. Mais uma vez se escutou o som dos clarins. A festa estava para começar. E Almeyra seria o primeiro toureiro a se apresentar.
A porta do touril se abriu, e uma fera de 604 quilos saiu a toda velocidade, investindo brutalmente sobre a amurada e os quatro subalternos inexperientes que tentavam distrair o animal com o capote. Os picadores foram mais duros e afundaram as lanças no dorso do animal, que sangrava em profusão. Mas este não parava de atacar. Quase derrubou um cavalo e seu obeso cavaleiro em uma de suas mais violentas investidas. No momento em que os bandarilheiros chegaram, a fera parecia tão desesperada como no início. Aqueles homens, em geral tão corajosos, tremiam diante do enorme touro.
As bandarilhas penetravam com dificuldade na pele profunda e calejada do bicho, que, com a língua para fora, bufava e atacava de baixo para cima, tentando perfurar o inimigo. Um dos bandarilheiros saiu com ferimentos leves, enquanto outro evitou o confronto. Sentiam como se realmente houvesse algo de demoníaco naquele pesado animal. Nunca haviam visto um touro tão furioso como aquele.
O som metálico dos clarins foi ouvido mais uma vez e Almeyra entrou no picadeiro. Estava tão tranquilo como no momento de sua apresentação, alguns minutos antes. O touro, até então extremamente agitado, subitamente parou e olhou para ele. Os dois pareciam se transfigurar, mudando a postura dos corpos e as expressões faciais. Daí em diante o público presenciou o que foi considerada a maior lide de touros de 1926 em todo o México. Os cronistas da época foram unânimes em apontar aquela apresentação de Almeyra como a mais formidável que haviam visto em muito tempo. Certamente foi uma luta impressionante. E também, a última participação de Almeyra na fiesta brava.
Todos os meses de meditação proporcionaram ao espada mexicano um maior conhecimento e controle de seu corpo e mente. Agora se sentia flutuando na arena. O animal já não era seu rival. Fazia parte de seu destino, havia sido escolhido entre outros touros para viver com intensidade aqueles momentos trágicos de luta, na qual o sangue e o suor dos dois iriam se mesclar, no qual seriam parte do mesmo drama pela sobrevivência e no qual compartilhariam todos os seus sofrimentos.
Almeyra subitamente se tornou extremamente agressivo e correu em direção ao touro, como se estivesse em transe. Os olhos abertos pareciam indicar ódio, mas em realidade apenas refletiam o estado alterado de sua mente. Com a muleta, provocou o monstro, que tentava estraçalhá-lo com seus chifres. Almeyra, contudo, desviava-se com leveza de cada ataque. Ainda chegava a brincar com bicho, dando tapas em sua cabeça. Destronques contínuos. A cada provocação, o lidiador gritava e então voltava a atiçar a fera. Mesmo começando a apresentar sinais de fadiga e muito sangramento, o touro ainda assim mantinha o mesmo ritmo de investidas.
A multidão, extasiada, parecia não acreditar no que presenciava. A energia e vigor dos dois protagonistas eram evidentes. Havia algo que parecia transcender o mundo físico ali, e alguns podiam sentir a energia emanada dos contendores. Em algumas ocasiões, todos ali presentes ficavam calados, silenciosos, os músculos em estado de tensão pela ferocidade da batalha. Alguns segundos depois, contudo, a multidão repentinamente, em êxtase, irrompia em gritos de júbilo. Tudo era eletrizante. Até os vendedores e guardas pararam de trabalhar para ver o que acontecia no picadeiro. Muitas vezes os chifres do animal pareciam raspar no traje de luzes de Almeyra, que aparentemente não percebia. A destreza e agilidade do matador eram impressionantes: conseguia se desviar de cada feroz investida. Tinha tanta confiança em si que não sentia nenhum temor diante daquele adversário.
Até que chegou o momento do sacrifício. O touro dava a impressão de saber que aquele seria o final de seus dias. Diante do diestro, abaixou a cabeça, como se aceitasse seu destino. Almeyra empunhou com firmeza a espada e apontou delicadamente em direção à corcova da fera. Penetrou a lâmina inteira, de forma rápida e certeira, uma única vez, dentro do corpo do oponente. Quando os ajudantes se aproximaram para distrair o bicho, Almeyra pediu para que se afastassem. Queria ficar a sós com seu amigo e contendor. Colocou sua mão aberta em cima da cabeça do adversário, enquanto este tentava a todo custo permanecer de pé. Até que o touro tombou sobre suas quatro patas e colocou a língua para fora da boca. O combate havia terminado.
Subitamente, o matador acordou de seu transe. Ouviu gritos ensurdecedores do público e viu milhares de mãos que agitavam panos brancos. Pediam que tivesse o direito de cortar as duas orelhas e o rabo, a maior honra que um toureiro pode ter. O presidente concedeu a exigência da multidão. Almeyra começou a caminhar lentamente, só então percebendo que sua roupa estava rasgada, repleta de manchas de sangue daquele enorme touro. Sentia dores em todos os músculos de seu corpo. Mas não demonstrava estar contente. Pelo contrário, por algum motivo, sentia uma tristeza profunda. Todas as suas teorias e justificativas já não pareciam mais satisfazê-lo. Queria apenas sair dali o quanto antes.
Ainda se aproximou mais uma vez do touro estendido no chão. Colocou a mão no rosto e chorou. Mas a multidão parecia não perceber isso e continuava a gritar freneticamente, jogando flores e chapéus no picadeiro.
Alguns fanáticos entraram no redondel e tentaram carregá-lo nas costas. Mas ele se recusou energicamente. Saiu sem falar com ninguém.
Nunca mais se teve notícias de Almeyra nas corridas de touros. Algumas pessoas chegaram a afirmar que ainda viram o toureiro, logo após aquela famosa lide, saindo do estádio correndo, com lágrimas no rosto, sozinho, pelas avenidas barulhentas da capital. Até que entrou numa rua estreita e nunca mais foi encontrado.
Gonzalo terminou de ler a última página e fechou o livreto. A história o havia impressionado. O amigo Corto ainda estava na mesma posição. Até roncava! Coçou a barriga, inconscientemente, virou-se de lado e continuou em sono profundo. O sapo, por sua vez, melancólico, com os pensamentos distantes, acendeu mais um cigarro e apenas olhou para o céu iluminado, repleto de estrelas.
fonte: blogdaboitempo
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