domingo, 27 de julho de 2014

Porque as civilizações morrem

Era um domingo de Páscoa, em 1722, quando o explorador holandês Jacob Roggeveen avistou de seu galeão um pedaço de terra perdido na vastidão do sul do oceano Pacífico. De longe, o lugar não era nada atrativo. Ao contrário da maioria das outras ilhas daquela parte do mundo, o terreno não tinha grandes árvores e a grama era tão seca que, a distância, parecia areia. Recebido por uma comitiva de nativos em canoas frágeis e cheias de remendos, Roggeveen resolveu desembarcar e surpreendeu-se com as gigantescas figuras de pedra, esculpidas na forma de rostos humanos, espalhadas ao longo do litoral. “Ficamos muito espantados, pois não compreendíamos como essas pessoas, que não dispunham de cordas fortes ou madeira adequada para construir máquinas, conseguiram erguer aquelas imagens com mais de 10 metros de altura”, escreveu em seu diário de bordo.
No interior da ilha, dentro da cratera de um vulcão extinto onde as estátuas costumavam ser esculpidas, o ambiente era fantasmagórico. As ferramentas utilizadas pelos escultores espalhadas pelo chão, estátuas inacabadas e outras deixadas para trás nas estradas que levavam ao litoral davam a impressão de que o lugar havia sido abandonado.
Quase 300 anos depois, o mesmo mistério que intrigava o capitão holandês ainda paira no pensamento de quem desembarca no aeroporto de Mataveri e depara com os enormes moais, as colossais estátuas de pedra que resistem há séculos na ilha de Páscoa. Entre esses visitantes está o biólogo americano Jared Diamond. Professor da faculdade de medicina da Universidade da Califórnia, Diamond é autor do livro Collapse (“Colapso”, previsto para sair em agosto no Brasil), que investiga os motivos pelos quais as sociedades desaparecem. A trágica história dos construtores de moais se repetiu em diferentes épocas com civilizações pequenas ou grandes, poderosas ou minúsculas. E o que Diamond percebeu é que elas desapareceram por motivos semelhantes – na verdade, com apenas 5 fatores é possível explicar o desaparecimento de todas as civilizações da história. Até a civilização em que vivemos hoje – cheia de maravilhas tecnológicas e com dezenas de países interligados – poderia sofrer esse mesmo fim. Conheça esses perigos – e a história das sociedades que se expuseram a eles.
Destruindo o ambiente
A chave para entender o misterioso desaparecimento dos construtores de moais está em uma ilha muito diferente da terra infértil e desmatada que Roggeveen encontrou. Analisando o pólen conservado por milhares de anos no fundo de pântanos na ilha de Páscoa, cientistas descobriram que, quando os primeiros polinésios chegaram lá, provavelmente há cerca de 1 400 anos, encontraram um pequeno paraíso. Eram 166 quilômetros quadrados cobertos por uma densa floresta subtropical que crescia sobre o solo fértil de origem vulcânica do qual a ilha é formada. Entre a vasta vegetação nativa, a planta mais comum era uma espécie de palmeira alta e robusta que só existia ali. Além de ter uma madeira forte o bastante para a construção de embarcações e para ajudar a transportar os moais, a palmeira fornecia nozes para a alimentação dos moradores.
A riqueza da fauna também se refletia nas panelas da ilha. Carne de golfinho, de focas e de 25 tipos de pássaros selvagens compunham o banquete – tudo cozinhado no fogo da lenha retirada da floresta. Também, haja comida. Pelos cálculos da arqueóloga Jo Anne Van Tilburg, da Universidade da Califórnia, cerca de 25% dos alimentos produzidos na ilha eram consumidos na intensa produção e transporte de estátuas. Estima-se que eram necessárias até 500 pessoas, utilizando cordas e uma espécie de trenó feito de grandes toras de palmeiras, para arrastar os moais por 14 quilômetros até o litoral.
A partir do ano 1200, a produção de estátuas entrou num ritmo mais acelerado, que durou por cerca de 300 anos. Era preciso cada vez mais madeira, cordas e alimentos para sustentar a crescente disputa entre os clãs que dominavam a ilha, que competiam para ver quem erguia as maiores estátuas. A competição, no entanto, acabou sem vencedores. Pouco depois de 1400, a floresta já não existia e a última palmeira foi cortada, extinta juntamente com outras 21 espécies de plantas nativas. Com a floresta, foram-se as fibras que eram transformadas em cordas, utilizadas em conjunto com as toras no transporte dos moais. Sem troncos fortes para construir canoas resistentes, capazes de ir até alto-mar, a pesca diminuiu muito e a carne de golfinho virou raridade nas refeições. As colheitas também foram prejudicadas pelo desmatamento, já que não havia mais vegetação para proteger o solo da erosão causada pelos ventos e pela chuva. Com seu habitat devastado, todas as espécies de pássaros que voavam pela ilha foram finalmente extintas.
Sem ter o que comer, o número de habitantes foi reduzido a um décimo dos 20 mil que chegaram a viver na ilha no auge do culto aos moais. Os moradores, famintos, finalmente cederam ao canibalismo. Em vez de ossos de pássaros ou golfinhos, arqueólogos passaram a encontrar ossos humanos em escavações de moradias datadas desse período. Muitos deles foram quebrados para se extrair o tutano. Até hoje, um dos maiores insultos que se pode dizer a um inimigo na ilha da Páscoa é algo como “tenho a carne da sua mãe presa entre meus dentes”. Não sobrou madeira nem pra palito.
O nome do crime cometido pelos nativos da ilha de Páscoa é ecocídio. Explore demais os recursos naturais de uma área e ela estará sujeita a um desequilíbrio que pode levar ecossistemas inteiros ao desaparecimento. Como todo ser humano depende desses recursos, um ecocídio acaba levando ao fim de civilizações inteiras. Às vezes, nem é preciso muito esforço: a própria natureza cuida de mudar todo o ambiente.
Que o digam os vikings. No ano 982, eles estabeleceram uma de suas comunidades em um fiorde na Groenlândia. O clima ali não era tão extremo e o lugar tinha pastos onde criavam ovelhas, cabras e gado. Além disso, os vikings completavam a alimentação caçando focas e caribus e trocando mercadorias com o continente. Só que, por volta do ano 1400, o tempo fechou. Foi a chegada da “pequena era glacial”, uma mudança climática que esfriou o planeta por quase 500 anos. Os verões ficaram mais curtos, o que dificultou a criação de gado. As focas e os caribus fugiram para outras regiões. Enormes blocos de gelo atrapalharam a navegação e impediram o comércio com o continente. A única comida que sobrou foram os peixes, que os vikings não comiam por motivos religiosos. Já os esquimós, que habitavam a vizinhança, não tinham nenhum problema quanto aos frutos do mar e conseguiram se manter, para a infelicidade dos conquistadores nórdicos. É que as relações entre as duas tribos nunca foram das mais amigáveis, o que pode ser visto em um relato viking do século 15 sobre os vizinhos: “quando eles recebem uma punhalada superficial, ficam com uma ferida branca, que não sangra. Mas quando são feridos mortalmente, sangram sem parar”. Com a chegada do frio, os poucos nórdicos que restaram foram exterminados pelos esquimós.
Disputas entre homens
Não se pode culpar só a natureza pelo fim das civilizações. Como qualquer economista diria, crises comerciais podem ser tão destruidoras quanto a pior das catástrofes ambientais. Foi o que aconteceu, por exemplo, em outras duas ilhas do Pacífico Sul. Pitcairn possuía ótimas fontes de minério para a produção de ferramentas e Henderson, a 150 km dali, concentrava o maior número de pássaros da região. As 2 dependiam de uma terceira ilha, Mangareva, para conseguir árvores próprias para fazer canoas e ostras que eram transformadas em anzóis para pescaria. A partir de 1400, surgiu então uma intensa rota de comércio entre as 3 ilhas. Enquanto isso, a população de Mangareva aumentava à medida que a ilha prosperava. O problema é que o número de habitantes cresceu tanto que os recursos – antes abundantes – começaram a ficar escassos. As florestas foram derrubadas e o solo não resistiu e acabou erodindo. Os alimentos já não eram mais suficientes nem para os moradores de Mangareva, quanto mais para as exportações das quais dependiam os vizinhos de Pitcairn e Henderson. Mangareva entrou em guerra civil e as matérias-primas pararam de chegar às outras 2 ilhas, que se viram isoladas. Definharam até que o último habitante deixou cada uma delas ou morreu.
Você já deve ter percebido a esta hora que aquela história de que uma tragédia nunca vem sozinha faz sentido. Não contentes em sofrer com problemas naturais e comerciais, muitas sociedades acabam entrando em guerra pelos poucos recursos que sobram. E esse fator só acelera o colapso da civilização. Os maias, instalados na península de Yucatán, no México, eram uma das civilizações mais avançadas da América pré-colombiana. Tinham calendário e escrita próprios, desenvolveram conhecimentos relativamente sofisticados em arquitetura e astronomia, mas, mesmo assim, falharam em resolver os problemas que levaram sua civilização à ruína. Com uma população que ultrapassava os 5 milhões, plantações tomaram o lugar de florestas inteiras na tentativa de alimentar todo mundo. Mas a devastação resultou em erosão, empobrecimento do solo e aumento das secas. Mais gente e menos comida, no fim das contas. As constantes guerras se intensificaram e acabaram se tornando batalhas por terras e alimentos. Os reis maias preferiram se isolar a tentar resolver os problemas que dizimavam seus súditos. “Eles apenas foram os últimos a morrer de fome”, afirma Diamond.
Vamos sobreviver?
O estopim para que uma sociedade vire poeira está, para Diamond, na combinação destes 4 fatores: destruição do meio ambiente, alterações climáticas, crises nas relações comerciais e guerras. Só que é preciso um quinto fator – o mais importante de todos – para liquidar de vez um povo: a estupidez. Qualquer problema minúsculo pode acabar com um povo se ele for incapaz de se adaptar. Por outro lado, alguns povos atravessaram catástrofes terríveis e continuaram vivos por muitos séculos.
A grande preocupação de Diamond é que, hoje, as grandes potências estão incorrendo nesses erros – e, para piorar, não dão sinais de que vão se adaptar ou corrigir a situação tão cedo. Olhando em retrospectiva, fica claro que as sociedades antigas cometeram erros óbvios. Destruir a floresta da qual depende sua sobrevivência, como fizeram os polinésios da ilha de Páscoa, além de burrice, significa cometer suicídio. “Hoje temos mais de 6 bilhões de pessoas, equipadas com máquinas pesadas e energia nuclear, enquanto os nativos da ilha de Páscoa não passavam dos 20 mil habitantes com ferramentas de pedra e a força dos próprios músculos. Mesmo assim, eles conseguiram devastar o ambiente e levar sua sociedade ao colapso”, diz Diamond.
Segundo o biólogo, nossa maior vantagem é a possibilidade de aprender com os erros de nossos antepassados. “É uma questão de transformar conhecimento em ações concretas. Apesar de sabermos das conseqüências, não agimos o bastante”, diz Eric Neumayer, especialista em desenvolvimento sustentável da Escola de Economia de Londres, Reino Unido. Ele cita como exemplo o Protocolo de Kyoto, acordo internacional em que 141 nações se comprometem a reduzir a emissão de poluentes que contribuem para o aquecimento global. Mesmo sabendo das possíveis conseqüências de uma mudança climática, os EUA – os maiores responsáveis pela emissão de dióxido de carbono na atmosfera – preferiram não participar do tratado. “Não adianta se isolar. As partes ricas do mundo precisam descobrir como viver sem arruinar a atmosfera para o resto do planeta”, diz John Mutter, vice-diretor do Instituto Terra, da Universidade de Columbia, em Nova York. “Os países africanos, por exemplo, vão ficar mais pobres. Haverá mais conflitos e mais mortes. Se não fizermos nada, a situação não vai se estabilizar. Apenas vai ficar pior, pior e pior”, diz. Mas, na opinião dos cientistas, não há motivos para perder a esperança. “Nossas sociedades precisam produzir e consumir causando muito menos impacto ambiental do que hoje. Chegar lá não é fácil, mas é possível”, afirma Neumayer. Difícil mesmo é saber o que estava pensando o lenhador quando cortou a última palmeira da ilha de Páscoa. O que quer que fosse, tomara que não precisemos passar pela mesma experiência.
fonte:http://super.abril.com.br/

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