segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Da sala de aula para a cozinha: vivências que ensinam pela compaixão


“Se tens um coração de ferro, bom proveito. 
O meu fizeram-no de carne e sangra todo dia.”  José Saramago
Se fosse para reivindicar um novo espaço na escola este seria uma cozinha estruturada para atividades pedagógicas. Já realizei dezenas de oficinas de alimentação vegetariana em vários locais, como ativista, mas percebo como é significativo desenvolver esta atividade como parte de uma proposta anual de trabalho, dentro da disciplina de Ciências da Natureza, no ensino fundamental.
Neste ano letivo consegui inserir a oficina sobre alimentação vegetariana nas turmas em que o estudo dos sistemas biológicos é o conteúdo principal, articulado aos conteúdos de matéria e energia. A oficina sobre alimentação vegetariana já não é mais uma atividade pontual e desconectada, da forma como iniciou na escola, e sim um dos momentos previstos em meu planejamento, como uma vivência pedagógica para além da sala de aula, mas não desconectada dela. Nestas turmas de 8° anos, os conteúdos de digestão e nutrição são abordados de forma comparativa (não estão restritos somente ao organismo humano). Os educandos tocados pela questão da dieta vegetariana, tema imprescindível na abordagem destes conteúdos, participam de forma voluntária da oficina, pelo simples desejo de saber mais.
Esta oficina ilustra o que já abordei sobre a importância de um segundo momento para educandos que manifestam vontade em ampliar seus horizontes acerca dos Direitos Animais, dentro do enfoque da educação abolicionista vegana (1). Compartilho aqui uma tentativa que deu certo. Com o apoio dos Abolicionistas Veganos (2), grupo de ativistas da cidade, do qual faço parte, e cobertura do Portal Comunitário de Ponta Grossa (3), projeto do Curso de Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa, contamos com a presença de vinte e três educandos numa faixa etária de doze a treze anos. Meninos e meninas ávidos por atividades diferentes e que esperavam por esta oficina, pois já sabiam que ela já tinha ocorrido em 2011(4).
O que mais chama a atenção nessa vivência pedagógica é a diferença nas relações educador-educando. A oficina aconteceu num espaço fora da escola, na cozinha de uma igreja, gentilmente cedida, para podermos trabalhar a tarde toda sem pressa. O grupo esteve envolvido nas atividades do início ao fim, cada um no seu ritmo, onde os questionamentos emergiam a cada receita, a cada comentário sobre um ou outro ingrediente, a cada oferecimento de ajuda, a cada pergunta sobre vegetarianismo, veganismo e formas de exploração animal.
Nestes momentos, onde compartilhamos conhecimentos sobre alimentação vegetariana, percebemos o quanto as crianças e adolescentes estão nas mãos deste sistema capitalista e especista, fomentado em muito pela mídia, que torna, por exemplo, nojento amassar uma banana para fazer um biscoito e normal comer uma salsicha que vem pronta, feita de restos de animais.
Mas a capacidade de mudança de percepção dos adolescentes é o que nos renova, é o que nos mantém firmes na contracorrente da educação escolar especista. A vivência na cozinha suscita a conversão do receio inicial aos alimentos vegetais, o que é infelizmente predominante entre crianças e adolescentes, em satisfação e alegria, ao prepará-los e saboreá-los. É lindo vivenciar momentos de mudança de percepção e de aproximação à visão de mundo biocêntrica, quando um educando confirma que realmente é gostoso se alimentar sem precisar contribuir com o sofrimento de animais não humanos.
Entre uma receita e outra as conversas fluem, impregnadas de significados, refletindo as visões de mundo dos educandos, e que não podemos deixar passar sem um bom debate:
“Mas, professora, por que você fala que se víssemos como se faz uma salsicha nós não comeríamos?”
“Ah, então eu não quero nem ver, pois quero continuar comendo!”
“Por que veganos não comem ovos?”
“Por que leite vegetal?”
“Por que vamos assar ao invés de fritar?”
“Ser vegano é questão de necessidade ou de vontade?”
“Eu não tenho coragem de matar!”
“Ui, não quero nem ver!”
“Ah, eu mataria, sim!” (será?)
Nesta tarde de diálogos e práticas, de estímulo ao trabalho colaborativo, dentre batatas e cebolas raladas, risos e brincadeiras, louças lavadas, bolinhos e biscoitos, estreitamos nossos laços, e tenho certeza que muita coisa mudou, para melhor, neste pequeno grupo. Os sentimentos tiveram mais espaço para serem expressos, para além do entra e sai das aulas de cinquenta minutos.
O ativismo abolicionista vegano na educação nos mostra como contribuímos para o resgate de uma educação sentimental, que não se reduz em mera defesa de bichinhos e esvaziamento conceitual, como a maioria preconceituosa aponta de forma insistente. Não sei em que se baseia essa aversão à abordagem pedagógica abolicionista vegana, manifestada em comentários geralmente anônimos. Buscamos evidenciar aos educandos o nosso inevitável papel de agentes morais diante de seres vulneráveis, sejam eles humanos ou não humanos, pacientes morais. Não há forma de discriminação e violência que se sustente na educação abolicionista vegana, pois o que se combate é o especismo, que contempla as lutas contra outros “ismos”, como o racismo e o sexismo. Todas as máscaras de opressão caem, quando o enfoque é biocêntrico.
Essa forma de encarar a educação requer, porém,  muito estudo, planejamento, avaliação da práxis, para um novo planejar. É necessário leitura e engajamento por parte do educador. Ensinar Ciências da Natureza desta forma requer buscar o que não está nos livros didáticos, buscar o não hegemônico, o que não é interessante divulgar, pois o resgate de nossa consciência animal rompe as bases deste modelo de civilização opressor-alienador. Ensinar Ciências pelo enfoque biocêntrico requer, para além dos Direitos Animais, desmascarar mitos nutricionais, muitas vezes reproduzidos até mesmo pelos nossos médicos, e que são convertidos em medos, mentiras e manutenção da lógica opressora.
A importância de uma educação como vivência, que articula ensino com ativismo pelos animais, pela saúde e pelo planeta, está justamente em sua natureza libertária, pois a escola reproduz a lógica de naturalização da violência contra animais não humanos (e humanos também) e seus ecossistemas sem precisar falar nada sobre isso. A merenda escolar é um exemplo, pois está repleta de pedaços e de secreções de animais torturados e mortos, acompanhados de produtos químicos, para que cheguem a todas as escolas do estado sem que apodreçam, graças aos conservantes, corantes ou aromatizantes artificiais. Currículo oculto.
A cultura da naturalização da violência contra os animais e seus ecossistemas pode ser gradativamente desconstruída, como podemos perceber em práticas simples, que buscam transcender o status quo. Mas para isso é primordial partirmos da nossa desconstrução pessoal, em meio a um sistema que mente, explora e desumaniza também a nós, educadores. Este é o grande desafio pedagógico, não somente falar, mas vivenciar a possibilidade de mudança em cada hábito cotidiano. Quantos de nós, educadores brasileiros, estão buscando, por exemplo, abolir a exploração animal de suas vidas?
fonte: anda

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