O pai se ajoelhou ao lado da filha e gentilmente a encorajou a pôr de lado seus medos.
“Não se preocupe”, sussurrou. “É só um gatinho.”
Mas, na verdade, deitada em um pedestal no saguão do circo Nikulin, em Moscou, balançando preguiçosamente a longa cauda amarronzada, a tigresa chamada Chanel não era uma gatinha.
Era um tigre-siberiano adulto, cujos treinadores usam em um dos mais assustadores rituais do circo russo: a prática de fotografar crianças com predadores durante o intervalo dos espetáculos.
Nesse momento, Chanel se senta. Enquanto as crianças se agrupam ao seu redor, seus enormes e iridescentes olhos amarelos continuam, inescrutáveis e selvagens, totalmente misteriosos sobre a pergunta premente que uma jovem preocupada faz a sua mãe: “Você acha que ela já comeu?”
Colocar crianças ao lado de feras carnívoras para uma foto -mesmo que por um segundo, enquanto o treinador se afasta- ilustra uma qualidade disseminada e profunda da cultura do país: a Rússia pertence a inveterados assumidores de risco. Nos negócios, na política, nas finanças e na aviação, uma atitude de desafio ao perigo está profundamente enraizada. Em apenas uma comparação, a Organização Mundial de Saúde disse em 2010 que o índice de mortalidade nas estradas da Rússia é de 55,4 por 100 mil veículos, já na Itália, era de 12 por 100 mil.
No século 19, o autor Mikhail Lermontov ficou tão surpreso com essa espécie de fatalismo que criou um personagem na novela “Um Herói de Nosso Tempo” que fazia roleta-russa com uma pistola de um só tiro. O personagem se salva porque a arma falha.
Quando perguntado sobre o perigo no circo, Andrei Y. Logulov, engenheiro químico magro e arrumado que incentivava sua filha Diana, de 11 anos, a se aproximar de Chanel para uma foto, encolheu os ombros como tantos outros russos.
Tudo isso torna a Rússia a terra do acidente evitável, do resultado trágico e da aposta que deu errado, no circo e em outros lugares.
E tem havido “acidentes”. No ano passado, um tigre de um circo itinerante mordeu a cabeça de um menino de dois anos durante uma sessão de fotos na cidade de Blagoveshchensk, no extremo oriente. O menino sobreviveu, apesar de a mordida ter fraturado seu crânio.
“É claro que isto é arriscado”, disse Logulov, “mas há riscos em todo lugar na vida. Um tijolo pode cair na sua cabeça na rua, por exemplo. Este é apenas um pequeno risco.”
Nos últimos anos, um leopardo-da-neve arranhou uma garota em um circo itinerante perto de Moscou e um tigre mordeu um espectador no balneário de Sochi, no mar Negro. Das cerca de 90 espécies de animais usadas em circos, uma dúzia é considerada pelos treinadores particularmente perigosa: macacos, tigres, leões, linces, pumas, ursos, leões-marinhos, morsas, águias, cangurus, hipopótamos, rinocerontes e elefantes.
Mas, pela emoção extra e pela renda, os cerca de cem circos que foram privatizados depois do colapso soviético costumam permitir que um membro relativamente dócil dessas espécies passeie pelo saguão de entrada durante os intervalos para tirar fotos. No circo Nikulin, uma foto com um tigre custa US$ 18 e com um urso, US$ 15. Os cerca de 70 circos que ainda são dirigidos pelo Estado proibiram essas práticas desde 2010.
Boris E. Maikhrovsky, vice-diretor encarregado de animais na Rosgostsirk, a companhia estatal de circo, e treinador de leões-marinhos e pinguins, disse que colocar crianças ao lado de predadores é inerentemente inseguro. Não é tanto uma ilustração do fatalismo russo, disse ele, quanto um sinal da ânsia pelo lucro superando o bom senso. Maikhrovsky defende no Senado russo uma lei que proíba tirar fotos de crianças com animais predadores.
“Temos uma ordem que proíbe categoricamente as fotos com animais”, disse ele. “Quem faz isso sabe que um dia acabará mal. Não podemos saber o que há na cabeça de um animal.” Os treinadores às vezes drogam os felinos antes das sessões, disse, embora isso nem sempre ajude.
Maksim Y. Nikulin, diretor do circo Nikulin e herdeiro de uma conhecida família de artistas circenses, defendeu as sessões como seguras e um bom exemplo de técnica. Além disso, a aparência de perigo faz parte das artes circenses, disse.
“As pessoas vão ao circo em busca de adrenalina. Se parecesse ser totalmente seguro, não seria interessante. Você olha e pensa: ‘Oh, esse homem pode ser devorado!’, ou ‘Aquele ginasta pode cair!’”
Chanel, disse Nikulin, é uma tigresa muito calma, que foi dessensibilizada desde pequena aos gritos das crianças e até a um ocasional e desaconselhável beliscão. Ele nega que ela esteja drogada.
No palco durante um intervalo recente, Chanel olhava calmamente para a multidão de crianças. Mikhail Zaretsky, seu treinador, explicou as medidas de segurança que ele adota, como alimentar o animal com quatro quilos de carne antes de uma sessão de fotos.
Quando Diana se sentou, estendeu o braço fino sobre o pescoço de Chanel, afagando-a.
Na multidão, alguns pais convenciam seus filhos temerosos a serem fotografados, enquanto outros tentavam fazê-los desistir disso.
Uma mulher que trabalha em uma barraca de sorvetes próxima há anos revirou os olhos e disse: “Deus seja louvado, nunca aconteceu nada de ruim aqui”.
Enquanto isso, Anya, uma menina de seis anos com um laço branco no cabelo, estava na entrada da jaula de Chanel. Ela olhou para a tigresa, então olhou para sua mãe e disse: “Estou com medo”. A mãe, Yulia M. Baranova, decidiu não tirar a foto.
“Nós olhamos para aqueles dentes, olhamos para aquelas garras…”, disse ela, e foram para as barracas que vendem algodão doce, ioiôs e dentes de vampiro.
Fonte: Folha de S. Paulo
Nota da Redação: Além do perigo que correm as crianças, é preciso citar a condição desses animais explorados pelos circos, seja para as fotografias ou para os números circenses. Eles são privados de uma vida livre na natureza, e forçados a realizar movimentos impróprios de suas espécies. E tudo para entreter humanos que, às vezes sem se dar conta, financiam essa injustiça. Apesar disso, felizmente,muitos circos pelo mundo já aboliram o uso de animais e realizam belos espetáculos, dando um exemplo de postura ética.
fonte: anda.jor
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